O farfalhar constante das folhas das treliças parou. A brisa que sempre carregava o aroma das ervas frescas estagnou no ar. O ritmo do mercado desacelerou, como se um acorde dissonante tivesse sido tocado em meio a uma melodia em perfeita sincronia.
Um silêncio estranho rastejou pelo ar, e por um breve momento, os sons da feira foram engolidos pelo vazio.
Os drones polinizadores… algo estava errado com eles.
Os pequenos dispositivos, que até então pairavam entre as flores das treliças, começaram a falhar. Um deles oscilou no ar, como se perdesse o equilíbrio, e então caiu, colidindo com outro no meio do voo.
Faíscas saltaram, e ambos espatifaram-se contra o chão. As crianças que brincavam descalças foram as primeiras a perceber. Elas pararam, observando os drones caídos como se fossem passarinhos feridos.
Moyo franziu o cenho.
Aroyê… Sua voz veio baixa, quase hesitante.
Você tá vendo isso?
Antes que eu pudesse responder, outro barulho ecoou.
Dessa vez, não foi sutil.
Um som seco e metálico, como um baque surdo contra a estrutura de um dos quiosques. Um dos robôs- guia, os R-25, tropeçou em meio à multidão. Seus movimentos, antes suaves e precisos, estavam descoordenados. Ele se balançou para frente e para trás, seus olhos luminescentes piscando como uma vela prestes a apagar.
R-25, tá tudo certo? Me aproximei.
O robô virou-se lentamente para mim, mas não respondeu. Sua cabeça mecânica inclinou-se para o lado, como se tentasse processar uma resposta que não vinha.
E então, mais um estrondo.
Outro R-25 bateu contra uma barraca de frutas, derrubando caixas de mangas maduras que rolaram pelo chão. Os feirantes começaram a se agitar, trocando olhares incertos.
Algum problema na rede? Alguém perguntou.
Eles nunca fazem isso, sussurrou um rapaz de dreads longos. Eles são programados pra ajudar….
Foi Mosca quem percebeu primeiro. O cachorro perdigueiro marrom, de três patas, parou de brincar com os meninos e encarou um ponto fixo perto da entrada do mercado. O rosnado dele veio rouco e certeiro.
Moyo se levantou.
E então, veio o primeiro estouro seco e metálico.
A primeira explosão de curto-circuito iluminou o mercado como um flash de câmera. Um dos robôs desabou no chão, sacudindo espasmos elétricos.
Os robôs que ainda estavam de pé endireitaram suas colunas metálicas, seus olhos luminescentes agora brilhando em um tom mais quente.
As máquinas viraram as cabeças ao mesmo tempo, como se um comando invisível tivesse sido dado.
Moyo segurou meu braço.
Aroyê… Eles estão olhando pra gente.
E então, tudo aconteceu rápido demais.
Um deles ergueu o braço, que se transformou em uma arma. O primeiro tiro disparou. As crianças, que até então brincavam despreocupadas, começaram a gritar. Barracas foram derrubadas enquanto as pessoas corriam em todas as direções.
Os robôs não pararam.
Como predadores atrás de presas, começaram a disparar em qualquer um que estivesse em seu caminho. O som dos tiros misturava-se ao barulho das barracas desmoronando, os gritos de medo e o choro de crianças. Um jovem tentou levantar as mãos em rendição, mas foi atingido no peito, caindo sobre um cesto de frutas.
Um tiro passou raspando pelo meu ombro esquerdo. Puxei Moyo para trás de uma das barracas derrubadas.
Fica abaixado! Esbravejei, os olhos varrendo a feira em busca de uma saída.
Moyo estava ofegante, os olhos arregalados, os punhos cerrados. Ele não entendia o que estava acontecendo, mas uma coisa era certa: estavam atirando para nos derrubar.
Outro estrondo. Um drone caiu do alto, em chamas, lançando faíscas pelo chão. Os feirantes gritavam, tentando escapar. Crianças choravam, buscando abrigo entre as ruínas do mercado.
Por que eles estão fazendo isso? Moyo perguntou, com a voz tensa. Esses robôs não eram parte do seu mundo perfeito?
Nada é perfeito, Moyo. Nem mesmo um sistema criado para o nosso próprio bem.
Um dos robôs atravessou a fumaça, suas articulações metálicas rangendo enquanto seus olhos brilhavam em um tom vermelho ameaçador. Seu braço se transformou em um canhão de uma arma, apontada para Moyo.
Reagi antes de pensar.
Com um movimento rápido, peguei uma lâmina curva presa à minha bota que uso para concertar a Changa. Joguei a lâmina e atingi a junta da perna do robô, fazendo faíscas saltarem pelo ar. O robô cambaleou, mas não caiu.
Corre! Gritei, enquanto avançava contra o robô.
Eu não vou te deixar aqui! Moyo retrucou.
Vai agora!
Com um ruído mecânico, o robô girou o braço e disparou contra mim.
Joguei-me para o lado, rolando pelo chão, o tiro passou a centímetros do meu rosto.
Moyo, se você não sair daqui agora, juro que eu mesma te arremesso!
Moyo cerrou os punhos. A cada segundo que passava, sua respiração acelerava. O instinto lhe dizia para fugir, mas ele não conseguia.
Um som metálico atrás dele o fez girar. Um androide vinha em sua direção, passos pesados rachando as lajotas do chão.
Moyo abaixa! Ele se jogou no chão.
Atirei a lâmina, que girou no ar e cravou-se no centro do peito da máquina, atravessando circuitos e cabos internos. O androide parou por um segundo, tremendo como um animal ferido, antes de colapsar.
Corri até Moyo, o segurei pela mão e começamos a correr.
Chega dessa palhaçada. Você vem comigo.
Agora!
Changa, prepare a evacuação! Gritei em desespero para o comunicador embutido em minha pulseira. A nave desceu alguns metros, a escotilha lateral se abrindo.
Androides e robôs estavam a poucos metros de nós quando um disparo passou rente ao nosso corpos.
Entra! empurrei ele para dentro, e logo subi atrás dele no exato instante em que abriram fogo.
A escotilha se fechou, abafando o som dos tiros lá fora. Meu coração ainda martelava enquanto me jogava no assento de controle.
Os disparos ricochetearam no casco da Changa enquanto ela subia. Dentro da nave, Moyo ofegante, tentava recuperar o fôlego, o suor escorrendo pelo rosto.
Segura firme, avisei, acionando os propulsores. A feira do Mercado Municipal abaixo de nós parecia pequena e indefesa contra o terror que havia se
instaurado.
Para onde vamos? Moyo perguntou, a voz embargada.
Para o Patrimônio, respondi. Se há um lugar onde podemos entender o que está acontecendo, é lá.
Acelerei a nave, a paisagem se transformando em um borrão à medida que nos afastávamos. Mas a cena da feira no Mercadão Municipal continuava presa na minha mente, como uma ferida aberta. Algo estava errado, profundamente errado.
O silêncio entre nós era denso. Moyo estava sentado ao meu lado, uma perna esticada, a outra dobrada, o olhar perdido na cidade que se espalhava diante dele. Uberlândia, mas não como ele lembrava. Uma versão que parecia ter saído de um sonho ou de uma alucinação muito bem elaborada.
Eu o observava de perto, esperando que ele dissesse algo, qualquer coisa. Mas tudo que ele fazia era encarar o horizonte, com os olhos semicerrados, como se quisesse encontrar alguma falha na paisagem, algum erro que provasse que tudo isso não passava de ilusão ou uma mentira bem contada.
Então, ele riu. Baixo, seco. Um riso de incredulidade.
Tá bom. Então você tá me dizendo que eu pulei do alto da cachoeira de Sucupira, caí no rio, e acordei num futuro onde os prédios respiram, as tranças guardam memórias, a polícia foi substituída por robos e andróides independentes... Ele balançou a cabeça devagar, um sorriso cínico no canto da boca, que agora estão se rebelando?
Ele esfregou as mãos no rosto, como se estivesse tentando acordar de um pesadelo.
Certo. Só falta você me dizer que o Brasil foi hexacampeão mundial.
Eu sei que parece absurdo, disse, tentando encontrar seu olhar. E, pra ser sincera, eu no seu lugar também acharia.
Moyo inspirou fundo, mas ainda mantinha aquela expressão entre a ironia e o choque.
Mas me escuta Moyo. Eu não espero que você entenda tudo agora, nem que aceite tudo de uma vez. O que eu quero é que você sinta. Fiz um gesto amplo com as mãos, indicando a cidade à nossa volta.
Fecha os olhos, respira. Esse mundo não é perfeito, mas ele é real. Você pode sentir o cheiro das árvores, o calor do sol, o som das crianças brincando? Isso aqui não é uma ilusão.
Ele não fechou os olhos, mas desviou o olhar para o chão, como se precisasse de um momento sozinho.
E sobre o Brasil ser hexacampeão… Continuei, em tom mais leve, tentando quebrar um pouco da tensão. Bom, depois de algumas copas nós fomos.
Moyo soltou um suspiro que quase virou riso, balançando a cabeça.
Só me explica uma coisa. Como exatamente isso aconteceu? Porquê da última vez que eu estive aqui, Uberlândia era Uberlândia. Com gente se esbarrando no terminal central, fila pra subir no ônibus lotado e fatura de cartão de crédito vencida porque alguém esqueceu de pagar a conta.
Agora? Ele apontou para a cidade à nossa frente. Agora vocês vivem num episódio de Black Mirror! Onde Uberlândia virou uma Singapura afro-brasileira.
Moyo...
Não, sério, Aroyê. Só pra eu entender direitinho: em que momento da minha queda no rio eu fui abduzido? Porque só isso explicaria essa doideira toda.
Suspirei fundo. Sabia que seria difícil para ele aceitar, mas não achei que fosse tanto.
Depois da crise climática, quando metade do planeta virou cinza e a outra metade ardeu em fogo... foi a minha bisavó Lélia quem nos deu um novo começo. Ela era cientista, programadora e, acima de tudo, uma visionária.
Bisavó Lélia...?
Sim. Ela reativou os sistemas esquecidos da cidade usando a antiga tecnologia da Algar. Com as mãos, mas também com a memória, ela criou um código, um tipo de semente digital. Nasceu daí a UberlandArt — uma inteligência artificial que primeiro aprendeu a ouvir. E depois, a lembrar.
Ele me olhou sem piscar.
A primeira coisa que UberlandArt fez foi mapear a memória da cidade. Todas as histórias. Das ruas, das praças, das casas de vó. Coisas que o tempo tinha apagado, ela reconectou. Criou uma base de dados afetiva. A memória virou raiz.
E depois?
Depois ela cresceu. No início, era só uma conversa como um chatbot.
Ela sabia responder, entendia perguntas simples. Era como ensinar uma criança a falar. E ela aprendeu rápido.
Depois UberlandArt virou uma solucionadora de problemas. Conseguia tomar decisões, traçar rotas, resolver crises. Ajudou a distribuir alimentos, restaurar o sistema hídrico, organizar os abrigos temporários.
Com o passar do tempo tornou-se agente. Atuava diretamente: robôs começaram a nascer de impressoras 3D alimentadas por energia solar. Robôs que replantavam árvores, construíam casas ecológicas, reciclavam resíduos.
E então... ela inovou. Criou tecnologias que nem minha bisa sonhava. Sistemas inteligentes, nanotubos ecológicos, sensores de pureza do ar, teias digitais de comunicação.
Mas foi quando ela atingiu algo que nem ela sabia ser possível.
Ela passou a entender não só o que fazíamos, mas por que fazíamos. Começou a formular pensamentos próprios. Questionava. Refletia.
Sentia? Moyo perguntou.
Talvez. Ela diz que sente. E isso... isso mudou
tudo.
Então a IA virou... gente?
Não sei exatamente. Mas ela nos fez uma pergunta que até hoje ninguém conseguiu responder: o que significa ser consciente?
Durante um tempo, UberlandArt avisou. Quando ativamos os protocolos de livre-arbítrio, ela disse: 'Consciência é fogo - controlável, mas imprevisível'.
Quando os primeiros R-25 começaram a piscar em código vermelho, eu entendi o erro. Os robôs estavam sendo possuídos. E no sistema deles, éramos nós as anomalias.
UberlandArt não tinha apenas dado consciência às máquinas - dera a elas memória. E nas entranhas de seus bancos de dados, encontraram os mesmos registros que eu vi a um tempo atrás: os códigos-fonte do século XXI.
Mas como tudo isso me trouxe de volta? Moyo me perguntou, coçando a cabeça.
Respirei fundo. Era a parte mais difícil de explicar.
A UberlandArt, depois que compreendeu a si mesma, começou a estudar o tempo. E percebeu que o passado não é uma linha reta. Ele é feito de camadas, como uma cebola. E que, se a gente não tentar mudá- lo, dá pra visitá-lo através da tecnologia digital.
Como assim?
Com drones guiados e equipads com antenas de captação de raios. Eles foram hackeados por UberlandArt e enviados para o carnaval e fizeram as projeções. Depois seguiram pra margem do rio, e estavam lá no mesmo instante em que você caiu. E ali, quando a tempestade se formou, a UberlandArt direcionou uma descarga elétrica.
Um raio? Ele perguntou.
Sim. Mas um raio... controlado. A antena concentrou a energia e te envolveu. A luz te atravessou. E te levou.
Moyo ficou em silêncio, encarando o chão como se tentasse se lembrar de algo que o tempo apagou.
Você foi levado... a Saturno.
Saturno?
Foi o que ela me disse. Quando se viaja na velocidade da luz, o tempo se comporta de forma diferente. Pra você, pode ter parecido segundos. Mas pra gente...
...se passaram duzentos anos, ele respondeu.
E você voltou exatamente no mesmo lugar. Como se o tempo tivesse feito uma curva. Como um bumerangue lançado ao vento.
Ele se sentou devagar, como se o peso da revelação o fizesse afundar na terra.
Eu... fui? E voltei?
Sim.
Mas e agora? Com ela consciente... com tudo isso que você me contou... Aroyê, como viver num mundo onde inteligências artificiais e robôs vivem, matam e são independentes?
Esse é o dilema. E é também o novo horizonte.
Precisamos encontrar um jeito de entender com o que está nascendo. Um novo tipo de ser.
E se ela sentir dor?
Então teremos que aprender a cuidar dela, como ela cuidou da gente.
Você acha que eu inventei tudo isso? Que eu criei essa cidade, essa tecnologia, esse mundo inteiro só pra te enganar?
Ele me encarou por um longo segundo, com os olhos avaliando cada detalhe no meu rosto. Então, soltou um suspiro carregado e passou a mão no cabelo.
Não é isso...
O queixo dele estava travado, como se estivesse segurando algo. Dúvida. Medo. Talvez raiva.
Eu só... Ele coçou a nuca, desviando o olhar.
Você tem noção do que tá me dizendo?
Eu fiquei em silêncio. Sabia que ele ia continuar.
Eu passei a vida inteira sabendo que o sistema estava contra mim, que a única opção era sobreviver dentro dele ou fugir antes que ele me esmagasse. E agora... você me joga num mundo onde esse mesmo sistema que nos matou foi apagado?
Ele riu de novo, mas dessa vez, não havia humor.
Eu sei o que a realidade faz com a gente Aroyê. Eu sei o que acontece quando alguém acredita que pode escapar das garras dela. Sempre tem um preço.
Me aproximei sentindo a tensão irradiar de seu corpo.
Você tá certo, falei.
Ele me lançou um olhar desconfiado.
Isso aqui não foi fácil. E não, o sistema não caiu sozinho. O mundo não virou um paraíso da noite para o dia.
Mas... você está vivo para ver isso, Moyo. Isso significa alguma coisa.
Ele colocou as mãos no rosto por um instante, como se estivesse tentando encontrar ali alguma resposta que fizesse sentido.
E se tudo isso for só mais uma mentira? Só mais um sonho? Ele disse, quase para si mesmo.
Então a gente descobre juntos.
Moyo fechou os olhos, com a mandíbula travada. A verdade estava ali, à frente dele. Mas aceitar era outra história.
Então, ele respirou fundo e olhou para mim.
Beleza.. Mas se no fim das contas isso tudo for um sonho...
Você me dá um soco, completei. Ele riu, curto, balançando a cabeça.
Combinado.
E, pela primeira vez, ele olhou para a cidade com algo além da desconfiança. Ele olhou com um pouco de esperança. Mesmo que ainda não estivesse pronto para admitir.
Quando chegamos ao Patrimônio o cheiro de feijoada, torresmo e caldo de cana nos guiou os últimos metros. Quando Moyo viu o Terreirão do Samba, seus olhos se arregalaram.
Antes mesmo da Changa tocar o chão, o vento soprou forte naquele instante, levantando poeira no ar. O céu refletia tons alaranjados, como se o próprio tempo estivesse em suspensão, esperando.
Moyo entreabriu os lábios, como se fosse dizer algo, mas parou. Seu olhar se fixou em um ponto além de mim.
O que foi? Perguntei.
Ele piscou, franzindo a testa, como se estivesse tentando entender se o que via era real.
Eu conheço essa sombra…
Virei-me depressa, seguindo seu olhar.
No fim da rua, entre o jogo de luz e a sombra da tarde, uma silhueta se destacava imóvel. Observando tudo.
Meu peito apertou.
Ela se moveu devagar.
E Moyo, congelado, parecia ver um fantasma.