Eu sei que tudo isso parece um redemoinho de lembranças e emoções, Moyo. Sua história está entrelaçada com as marcas de um sistema que tentou nos apagar por gerações.
O tempo tem um jeito de nos arrastar por entre suas marés, fazendo com que, dores e injustiças se embaralhem até não conseguirmos mais distinguir onde uma termina e a outra começa.
Mas eu preciso que você ouça, que realmente ouça, porque sua história não é só sua. Ela é nossa. Ela é de cada corpo negro que já caminhou por essas ruas, de cada nome que foi apagado antes mesmo de ser lembrado.
E quando eu digo isso, não falo apenas da perseguição que você sofreu, dos tiros que silenciaram sua família, do medo que perseguiu seus passos como uma sombra. Eu falo do peso que carregamos no peito antes mesmo de aprendermos a andar, da luta que herdamos sem nunca termos pedido por ela.
O que aconteceu com você não é só o reflexo de um incidente isolado, mas de séculos de opressão sistematicamente orquestrado.
Eles querem que acreditemos que a violência que nos atinge é aleatória, que é um acidente infeliz, que foi um erro de abordagem, um mal-entendido. Mas nós sabemos dar nome a isso.
E, para eles, nunca estivemos do lado certo. Nunca fomos os filhos que precisavam de proteção, nunca fomos os jovens com um futuro brilhante pela frente. Fomos os suspeitos, os alvos fáceis, as estatísticas frias estampadas em manchetes que ninguém se dá ao trabalho de ler por completo.
Tentaram fazer de nós inimigos a serem combatidos e perpetuaram um ciclo de violência que destruiu famílias.
E esse ciclo, esse monstro insaciável que devora gerações sem nunca se saciar, também tentou destruir a sua, Moyo.
Tirou de você as mãos que te seguravam quando pequeno, as vozes que te ensinaram o nome das estrelas, o riso do seu irmão no banco de trás de um carro que nunca deveria ter sido alvejado.
Moyo levantou os olhos para mim, e eu vi o que ele tentava esconder. A raiva. A dor. A culpa de ter sobrevivido quando os outros não tiveram a mesma possibilidade.
Eu conhecia aquele olhar. Já o tinha visto refletido nos meus próprios olhos tantas vezes.
Você é um sobrevivente continuei, com a voz firme como a terra sob nossos pés.
E não importa quantas vezes tentem nos apagar, nos dobrar, nos arrancar desse mundo. Enquanto houver alguém que carrega a nossa ancestralidade no coração, nunca estaremos realmente vencidos.
Moyo abaixou a cabeça, como se o peso de cada palavra que eu dissera estivesse afundando em sua pele, se entranhando nos ossos, despertando memórias que ele passou a vida inteira tentando esquecer.
O silêncio entre nós não era vazio. Ele era carregado de histórias sussurrados pelos ventos, que atravessavam gerações.
Então, o céu respondeu.
Um som distante cortou a quietude, como se a própria história estivesse abrindo um novo capítulo diante de nossos olhos. O rugido dos motores crescia, reverberando no solo, fazendo as folhas secas vibrarem ao redor.
Olhei para cima, e o brilho metálico refletiu na queda d'água da Cachoeira de Sucupira. Seu casco prateado brilhava como um espelho distorcido, refletindo as formas da cidade abaixo, uma Uberlândia que ele não reconhecia mais.
Moyo levantou o rosto, e piscou lentamente, o cenho franzido em puro ceticismo.
O que…? Ele coçou a cabeça. Agora eu tô mesmo delirando.
A aeronave Millennium surgiu do nada, cortando o céu de Uberlândia como um grande carcará de metal, ruindo pelo horizonte. Seu reflexo metálico contrastava com a luz do sol, iluminando levemente o rosto de Moyo, que olhava bobo para aquela cena. Ao seu lado, eu observava em silêncio, aguardando o momento certo para falar.
Ele ficou ali, parado, os músculos tensos como se sua mente estivesse tentando decidir entre correr ou aceitar que aquilo era real.
Moyo, comecei com uma calma que eu mesma precisava cultivar, hoje é vinte e nove de dezembro de dois mil duzentos e vinte e cinco.
A boca de Moyo se abriu, mas as palavras não vieram. Ele deu um passo para trás, seus olhos arregalados e cheios de incredulidade, como se o mundo estivesse desmoronando diante dele.
“Como... como isso é possível?” ele sussurrou, com a voz falhando, carregada de incerteza.
Apertei sua mão, sentindo o tremor em seus dedos. Eu sabia o que ele estava sentindo.
Eu sabia porque, muitos anos antes, eu também havia sido atingida por uma verdade que parecia impossível de suportar.
Lembrei-me de quando era criança, sentada aos pés de minha bisavó, Dona Lélia, em sua pequena casa de barro, mas cheia de histórias.
Era lá que as memórias de nossos ancestrais ganhavam vida através de suas palavras, e eu, com meus olhos curiosos, escutava tudo. “A história corre nas suas veias, minha pequena Aroyê", ela dizia. "É o que nos mantém vivos.
Essas palavras ficaram comigo desde então, e depois que ela se foi, um vazio profundo se instalou. Foi nesse vazio que surgiu o desejo incontrolável de preservar essas memórias e dar continuidade à nossa história. Foi por isso que a Dona Lélia construiu UberlandArt. Para que a nossa memória nunca se apagasse.
Um toque rápido no meu relógio e a camuflagem se dissolveu, como neblina ao amanhecer. A minha nave, batizada de "Changa", revelou-se como uma coruja buraqueira, de cor marrom-clara, manchada e barrada de preto. Moyo ficou estático.
Não pode ser... Ele piscava freneticamente.
Antes que eu pudesse dar mais um passo, Moyo levantou a mão como se estivesse pedindo tempo em um jogo de futebol.
Espera aí, Aroyê… Preciso beber água.
Estreitei os olhos discretamente, enquanto ele caminhava até a margem da cachoeira Sucupira. Ele se inclinou, levou as mãos à água...
Seus olhos arregalaram como se tivesse visto um fantasma.
Mas o quê...? Ele se aproximou da margem, olhando para o reflexo que mostrava sua pele mais avermelhada e o cabelo todo branco como algodão.
Moyo deu um salto para trás, como se água tivesse pegando fogo.
Eu ainda tô sonhando, né? Ele esfregou os olhos com força e depois me olhou como suspeita.
Se fosse um delírio, você acha que eu ia perder meu tempo com você? Eu teria conjurado um holograma do Gilberto Gil e do Jorge Ben pilotando essa nave enquanto cantam “A Tábua de Esmeralda”.
Moyo arregalou os olhos.
Peraí… Isso é possível?
Com a tecnologia de hoje? Muito. Mas infelizmente, você vai ter que se contentar comigo.
Ele coçou a nuca, olhando para a nave ainda com desconfiança.
Revirei os olhos e respirei fundo para segura o riso. Nós nos encaramos por um segundo.
Ele ainda estava digerindo a informação, olhando
para a cidade de Uberlândia transcendendo à sua frente como se cada detalhe fosse um enigma.
Isso aqui... Ele balançou a cabeça. Isso aqui não parece o mesmo mundo de onde eu vim.
Cruzei os braços, observando o horizonte.
Como assim? O que aconteceu? Ele perguntou.
Do tempo de onde você vem... muitas pessoas ainda debatiam se a crise climática era real. Como se o calor infernal, a poluição sufocante e as catástrofes naturais estivessem só de brincadeira.
No Brasil e no mundo a natureza tentou avisar, mas a humanidade seguiu negando. Negando enquanto rios secavam, negando enquanto o ar ficava irrespirável, negando enquanto o planeta fritava como um ovo na frigideira.
Moyo engoliu em seco, olhando para a paisagem com um novo peso nos olhos.
E o que aconteceu?
Primeiro veio a seca. O aumento das temperaturas trouxe ondas de calor que não perdoavam ninguém. Em Uberlândia, o sol queimava o asfalto como se estivesse fazendo um churrasco da gente.
A poluição do ar virou um assassino silencioso. Doenças respiratórias explodiram: asma, bronquite... As plantações sofreram. O solo foi se tornando um fantasma do que já foi um dia. As queimadas para abrir espaço e “passar a boiada” transformaram a terra fértil em deserto.
O ciclo era simples: desmatava-se mais, chovia menos. A cada novo ciclo de seca, o preço dos alimentos disparava.
E quando o arroz e feijão viraram artigos de luxo, o que sobrou? Alimentos ultraprocessados. Mais práticos, mais baratos e, claro, mais venenosos. A explosão de câncer, diabetes, hipertensão? Foi tratada como um "problema individual". Como se fosse só uma questão de força de vontade.
Mas, Moyo, não foi só o clima que colapsou.
O ódio e a agressividade contra quem pensava diferente se tornaram comuns. Era como se discordar fosse um crime.
O desrespeito à vida também se espalhou pelas omissões das pessoas, das instituições, de todo mundo que escolheu abaixar a cabeça e ficar em silêncio. E assim, de absurdo em absurdo, cresceu uma cultura da impunidade. Gente que se achava acima da lei, zombando da justiça e das dores alheias.
E sabe o que mais doeu? Eles se alimentaram da insatisfação do povo. Usaram o cansaço das pessoas com a política pra vender uma ideia de que eram contra o sistema, de que “tudo é igual, todo político é ladrão, exceto eles...” E nesse caldo de descrença, plantaram o seu fundamentalismo ressentido.
Acreditaram na força. No braço armado como resposta pra tudo. Pra assalto, pra pobreza, pra ter direito, pra diferença.
E o Brasil, Moyo... foi sendo dobrado pela brutalidade.
Ainda teve quem tentasse reembalar o velho sistema em um pacote novo e chamá-lo de "economia verde". Aquela velha história: "vamos salvar o meio ambiente sem mexer no crescimento econômico!"
Ah, que gracinha. Queriam convencer o povo de que multar empresas por poluir era suficiente. Como se grandes corporações não tivessem bolsos fundos o bastante para pagar todas as multas do mundo e seguir jogando veneno na terra.
As grandes indústrias seguiram lucrando, vendendo certificados ambientais para si mesmas, enquanto o Estado fingia regular, mas continuava refém dos mesmos interesses. Porque, no fim, a única coisa que move esse sistema é o lucro. Se proteger o planeta não gera dinheiro, então não acontece.
O momento em que a humanidade percebeu, tarde demais, que não havia lucro suficiente para comprar um novo planeta. A chuva não parava, e as águas avançavam, devorando cidades, campos e tudo que via pela frente.
Ainda teve gente dizendo: "Isso já aconteceu no passado. As pesquisas científicas não são confiáveis."
Enquanto isso, as geleiras derreteram como sorvete de flocos e subiram como água em todo continente Americano.
Quando vieram as tempestades, os oceanos devoraram cidades inteiras.
As fronteiras que antes nos separavam por etnia, cor, idioma e dinheiro agora estavam apagadas para todos igualmente. Não importava se você já tinha um milhão na conta ou um milhão de dívidas, o mundo pertencia a quem conseguia sobreviver.
Os refugiados climáticos vagavam por terras que não os queriam, carregando no corpo as marcas de um planeta que os expulsava e os tratava como um vírus.
Moyo olhou ao redor, absorvendo as ruínas do que um dia foi chamado de civilização.
Foi só depois que o planeta Terra desabou sob peso da humanidade, que algo novo pôde nascer. E agora, aqui estamos nós, reconstruindo um amanhã onde não dependemos mais de um sistema que nos explora até a última gota de sangue.
A diferença agora? Estamos com os ouvidos abertos para o entendimento.
Vem comigo Moyo. Você precisa ver com seus próprios olhos.
Agarrei sua mão e o puxei em direção à nave. Ele tropeçou, ainda com os olhos arregalados, absorvendo tudo. Quando entramos, o casulo de metal nos envolveu e a iluminação azulada da cabine projetou sombras suaves em nossos rostos.
Segura firme.
Ativei os controles. A Changa rugiu, elevando-se com um movimento suave, e em poucos segundos, estávamos acima da cidade de Uberlândia.
Meu Deus... Isso só pode ser um sonho!
O que se apresentava diante de nós era tão além do imaginável que, se eu estivesse em seu lugar, teria jurado que era uma ilusão.
A cidade de Uberlândia, que antes era apenas uma sombra do progresso descontrolado, estava bem diferente.
As construções pareciam surgir do chão, como árvores que cresciam em direção ao céu.
Ao invés de imponentes arranha-céus de concreto e vidro, ali estavam prédios vivos, cujas paredes respiravam com a cidade, revestidas por camadas de vegetação que interagiam com o meio ambiente.
Moyo ficou paralisado, como quem não conseguia acreditar no que estava diante de seus olhos. Ele olhava para baixo, a boca entreaberta.
Esses prédios são mais do que casas, comecei a explicar, com um toque de orgulho na voz.
Eles são parte do ambiente.
A bioarquitetura aqui segue o princípio de harmonia com a natureza, uma conexão direta com as nossas tradições de respeito à terra. Cada parede é feita de materiais que respiram e se adaptam ao clima. E todo o sistema energético é alimentado por fontes renováveis.
Aqui, nós não tomamos da terra. Nós vivemos com ela.
As plantas que cresciam ali não eram meros adornos. Eram parte do sistema de cultivo que alimentava a comunidade. Frutas, legumes e ervas se enredavam pelas treliças, e podiam ser colhidas diretamente por quem passava.
Essas paredes... cultivam comida? Moyo perguntou, incrédulo.
Sim, e isso faz parte da maneira que se vive aqui.
A arquitetura é uma extensão do meio ambiente.
Esses prédios são feitos para dar vida. Além de oferecer abrigo, eles nos alimentam.
Drones polinizadores voam de flor em flor, como abelhas digitais, garantindo que nossos jardins suspensos sempre floresçam. Aqui, as máquinas não destroem a natureza. Elas a amplificam, a protegem.
Moyo me observava, absorvendo cada palavra. Eu sabia que ele ainda não compreendia o que tudo isso significava.
Lembrei-me novamente de minha bisavó Lélia, me dizendo: “Eu criei UberlandArt.com," continuei, "porque queria que ninguém mais sentisse o vazio que eu senti quando a história da nossa família começou a se apagar. Eu queria que as pessoas se reconectassem com os seus ancestrais, com quem elas eram, e que soubessem que, mesmo com tudo que sofremos, nós sobrevivemos e vivemos.
O que você vê Moyo, continuei, não são só prédios cobertos de vegetação ou fazendas urbanas. Você está vendo a união de dois mundos que nasceram para coexistir.
Sente essa brisa suave tocar seu rosto, Moyo? A escotilha da Changa se abriu com um som sibilante.
O vento carrega o cheiro das águas do Rio Uberabinha limpas e puras.
Mas o mais transformador disso tudo não está nas construções... O que realmente me surpreende é a maneira como pensamos e vivemos. Tudo aqui gira em torno de três palavras: comunidade, compartilhamento e confluência.
Tá me dizendo que isso é Uberlândia? Moyo perguntou, com os olhos arregalados como quem ainda desconfia que colocaram algum alucinógeno na sua bebida durante o carnaval.
Ele riu, meio cético, meio rendido ao deslumbramento.
Se isso for um delírio... pelo menos Uberlândia virou um paraíso.
Passamos sobre um lugar que ele conhecia bastante:
Lembra da avenida Rondon? Perguntei, apontando para o antigo eixo urbano da cidade. Ali era o córrego São Pedro. Hoje... É um rio largo e vivo, contornado por uma praia urbana. Sim, você ouviu direito. Uma praia. Aberta, compartilhada, onde descansamos e nos divertimos durante a semana. Ninguém mais era arrastado por enxurrada nenhuma. A cidade havia aprendido com os próprios erros.
A avenida que um dia entupia de carros nas chuvas agora era uma linha verde de convivência, com ciclovias, hortas urbanas e painéis interativos. A imagem de uma senhora projetava-se num mural digital: era um registro da Folia de Reis, celebrado todos os anos.
Seguimos pela rota aérea da Changa, planando baixo agora, enquanto eu mostrava para Moyo como reconstruímos a cidade.
Cada curva do voo revelava outra memória restaurada.
Lá embaixo, o Centro Municipal de Cultura, o antigo Fórum, permanecia de pé, mas não como uma ruína do passado. Hoje, era um centro efervescente de cultura e de arte compartilhada. Sua fachada, agora abraçava jardins suspensos e paredes que contavam histórias em projeções contínuas: de eventos e momentos esquecidos, festas e celebrações populares.
A poucos metros dali, reconheci a curva da via que levava até a Igreja do Rosário, erguida com a força das mãos e das rezas dos nossos ancestrais.
Dava pra ver uma roda se formando na Praça do Rosário, logo ao lado, congadeiros em trajes reluzentes, dançando devagar, guiados pela cadência dos tambores.
Descemos em espiral lenta, rumo ao Mercado Municipal. O velho Mercadão sobrevivera ao colapso não por acaso, mas por insistência. Era raiz. Ali tudo florescia: comida, cultura, pessoas...
É muita coisa pra minha cabeça, Aroyê...
É. E ainda nem começamos.
Foi então que ouvimos o som do berimbau.
O atabaque respondeu com batidas que vibravam no peito, e logo as palmas sincronizadas tomaram conta do espaço.
Era como se o chão respirasse junto.
Moyo parou. O corpo dele, ainda tentando se ajustar a tanto, pareceu entender sem palavras. A dança começou. E eu sabia: ele estava sentindo o que eu sempre senti aqui. A vibração viva de uma cidade que aprendeu a não apagar o que é ancestral.
Moyo virou a cabeça na direção do som, intrigado.
E essa batida? É um sistema de alerta ou o futuro ainda curte um bom tambor?
Ri apontando para baixo, onde a movimentação começava a crescer. O aroma das bancas de especiarias se misturava ao ar, e o sol já começava a sapecar a pele.
As vozes se ergueram em coro, como se estivessem chamando nossos ancestrais para testemunhar aquele momento:
Eu queria entender bem melhor a vida Mas tem coisas na vida sem explicação.
Por que é que eu não posso viver sem capoeira, Sem dar aú, fazer rasteira, pôr a cabeça no chão?
Moyo parou no meio do caminho, os olhos fixos na roda de capoeira que se formava. Eu senti quando sua respiração ficou mais pesada.
Ele não piscava. Não se mexia. Só olhava.
O ritmo da música crescia, e as palmas acompanhavam como batidas de um coro coletivo. Os capoeiristas entravam e saíam da roda, gingando com alegria e vitalidades, esquivando-se no último segundo, os pés riscando o chão como se estivessem escrevendo poesia com o corpo.
Moyo passou a mão pelo próprio braço e eu vi – ele estava arrepiado dos pés à cabeça.
O refrão voltou, forte, poderoso, atravessando o espaço como uma oração:
Eu queria entender bem melhor a vida Mas tem coisas na vida sem explicação
Por que é que eu não posso viver sem capoeira, Sem dar aú, fazer rasteira, pôr a cabeça no chão?
Moyo fechou os olhos e balançou a cabeça lentamente, como se estivesse ouvindo algo além da música, algo que vinha de dentro dele.
E então ele começou a bater palmas com força, acompanhando o ritmo da roda:
“Não sei como eu me apaixonei por ela
Ela veio de mansinho e ganhou meu coração
Por ela eu me tornaria um vagabundo
Percorreria o mundo por causa dessa paixão.”
A roda se incendiava. Os pés deslizavam, os corpos dobravam e saltavam como folhas ao vento. Cada ginga, cada rasteira, era coreografada com uma beleza quase sobrenatural.
Era como se o Mestre Guimes e o Mestre Pastinha estivessem ali, contemplando cada movimento com uma força invisível.
Olha só! Apontei com o queixo.
Uma capoeirista, ágil como o vento, executou um martelo, e o sol respondeu com um brilho fulminante, como se a luz reconhecesse o movimento e o abençoasse.
Por um segundo, tudo parou. A capoeirista pousou no chão com leveza, o corpo fluindo como um rio, e as palmas explodiram ao redor.
A música seguia, mas algo no ar mudou. O cheiro das especiarias, o murmúrio das conversas e o perfume doce de frutas maduras começaram a invadir nossos sentidos. Aos poucos, os sons do mercado municipal se misturaram ao batuque da roda.
Uma criança passou correndo entre nós, segurando uma sacola de pano cheia de maracujás. Um senhor de barba branca e sorriso largo, gesticulava para alguém mais adiante.
Moyo ainda tentava decifrar tudo à sua volta quando ela surgiu.
Bela Vittar vinha deslizando entre as barracas como quem flutua ao som de uma música que só ela ouvia. O tecido inteligente que cobria seu corpo reagia ao ambiente com uma leveza hipnótica, se retraindo como se respirasse junto com ela.
Bela! Chamei, sorrindo.
Ela virou o rosto em câmera lenta, e os olhos, delineados com traços dourados que pareciam feitos à mão, se iluminaram ao me ver. Cabelo raspado de um lado, e longas tranças do outro pendiam sobre o ombro como raízes sagradas.
Moyo tentou disfarçar o impacto, mas eu vi: Bela não passava despercebida. Era dessas que mudam a frequência do ambiente só de chegar.
Ela abriu os braços num gesto aberto, quase ritualístico, e demos um longo e carinhoso abraço.
Aroyê, minha agente do caos, disse Bela, com a voz rouca que parecia arrastar estrelas. E quem é o amigo de olhos esticados?
Eu ri e apontei com o queixo.
Esse é o Moyo. Veio de longe. Bem longe.
Bela se virou para ele devagar, como quem lê a vibração antes do nome.
Olá Moyo, ela disse, inclinando a cabeça levemente. Seja bem-vindo à dobra do tempo.
Moyo tentou responder, mas parecia mudo diante de Bela. Os olhos dele se fixaram nas tranças, que ondulavam com um leve brilho azulado enquanto ela falava. Uma delas mudou de cor, passando do vermelho para um tom de violeta profundo.
Suas... suas tranças... Ele começou, a guaguejar.
Bela percebeu o fascínio. Levantou uma das mechas, que pareceu vibrar em sua mão.
Elas reagem às emoções, explicou, sorrindo.
E também às palavras. Cada uma dessas aqui está conectada a minha memória.
Ela mexeu os dedos e, com um toque sutil, três tranças se entrelaçaram e projetaram uma imagem holográfica no ar, cenas da festa do Congado, os tambores tremendo o chão, crianças correndo entre os capitães, fitas coloridas bailando no vento.
Quando registro algo com o coração, isso vive aqui. Ela tocou o peito com a outra mão. E vive aqui também, disse, segurando a trança.
Moyo não disfarçava mais. Estava deslumbrado. Seus olhos brilhavam como quem reconhece algo perdido. Ele carregava mundos em ruínas dentro de si, e havia encontrado ali uma fresta, uma possibilidade de reviver o passado.
Bela, percebendo o turbilhão nos olhos dele, aproximou-se mais, sem invadir.
Se quiser, posso te mostrar uma memória, disse com doçura. Mas cuidado. Tem lembrança que cura. E tem lembrança que quebra.
Ela tocou novamente uma de suas tranças, que piscou em azul turquesa e depois se dissolveu numa névoa de imagens: rostos sorrindo, pés dançando em roda, mãos segurando outras mãos. Um fragmento temporal de afeto coletivo.
As memórias não são só pra guardar, olhando para mim e depois para Moyo. Às vezes, elas servem pra lembrar que a gente ainda pode sentir.
Moyo respirou fundo. Acho que por um momento ele quis chorar, mas não chorou. Ele apenas observava, como quem recebia um presente que ainda não sabia como abrir.
Bela então deu um passo para trás, como se percebesse que seu tempo ali estava chegando ao fim.
Preciso ir, disse, olhando para um ponto no horizonte que nós não víamos. Hoje o show começa mais cedo. Ela piscou para mim, e suspirou baixo, só pra gente escutar.
Você sabe onde me encontrar.
Moyo tentou dizer algo, mas parou no meio da frase. Apenas estendeu a mão. Bela não apertou — ela envolveu a mão dele com uma trança, num gesto que era mais conexão do que contato.
Cuide bem dele, Aroyê — disse ela, olhando de lado pra mim com um sorriso enviesado.
Bela se afastou devagar, o tecido de sua roupa se dissolvendo em partículas de luz à medida que caminhava. E então ela desapareceu entre as barracas da feira, como se tivesse voltado ao fluxo da cidade de Uberlândia.
Moyo ficou olhando por mais alguns segundos, imóvel. Depois, respirou fundo, como quem retornava de um mergulho.
Ficamos em silêncio, andando entre as pessoas que circulavam pelo mercado como se tudo fosse normal e talvez fosse.
Depois de alguns segundos, ele quebrou o silêncio.
Mas me diz uma coisa, Aroyê... Moyo começou, com a voz um pouco mais séria.
Quem controla tudo isso?
Eu o encarei, deixando que sentisse a resposta antes mesmo de dizê-la.
Nós.
Ele franziu o cenho, como se aquilo fosse simples demais pra ser verdade.
Não há governo, não há corporações sugando nossa energia. Aqui, cada um contribui com o que pode, e todos são cuidados. Nossa economia é baseada no compartilhamento, e o UberlandArt organiza essa rede sem que haja exploração.
Não há uma autoridade central que possa interferir ou controlar. Tudo é gerido pela própria comunidade.
É como nossos ancestrais faziam. Eles criavam seus próprios sistemas de sobrevivência, longe dos olhos opressores. Agora, fazemos o mesmo, mas também com códigos e sistemas inteligentes.
Isso é o que eles sempre sonharam, não é? Uma forma de viver onde não dependemos de ninguém além de nós mesmos.
Hoje, temos a chance de fazer as pazes com a nossa história, de transformar a dor e as faltas do passado em impulsos. Cada escolha que fazemos não é apenas sobre o agora, mas sobre o que deixaremos para os próximos que virão.
As escolas que você conhecia? Não existem mais. Agora, temos centros de sabedoria compartilhada. Não há grades curriculares fixas. Aprendemos com a terra, com os animais, com os mais velhos, com os mais novos e com as estrelas. E também com a tecnologia. Mas, acima de tudo, aprendemos uns com os outros.
E essas crianças? Apontei com o queixo, sem interromper o passo. Elas são a prova viva de que estamos no caminho.
Elas correm com os pés descalços e as cabeças erguidas, sem medo e sem vergonha de mostrar quem são. Elas têm a liberdade de existir em sua plenitude e de expressar sua singularidade.
E essa liberdade se espalha pelo vento, e está aqui, viva, nos risos das crianças que corriam entre as barracas. Elas passavam correndo entre as pessoas na feira, desviando dos sacos de farinha e das pilhas de frutas com a agilidade de quem sabe que o mundo é seu por direito.
Moyo finalmente sorriu. Era breve, mas sincero. E era o suficiente pra me fazer acreditar mais uma vez que ele estava voltando. Que aquele rapaz ferido, perseguido, desacreditado do futuro, começava a se replantar em si mesmo.
Seguimos entre as barracas enquanto o som da roda de capoeira explodia em palmas.
O cheiro doce das mangas maduras se misturava ao aroma forte do café torrado, e as vozes preenchiam o ar, como um coro improvisado que celebrava o dia.
Moyo observava tudo em silêncio, ainda imerso nos próprios pensamentos. Mas, pouco a pouco, era impossível não ser contagiado pela energia vibrante daquele lugar.
Um arrepio me subiu pela espinha, como se o tempo tivesse passado a respirar com outro ritmo.
As crianças ainda corriam, mas seus risos chegaram atrasados. Meio segundos depois. O barulho da feira também parecia arrastado, como se o mundo tivesse tropeçado no próprio tempo.
Moyo parou.
Eu senti na pele o momento em que ele também percebeu. Foi pelo modo como ele enrijeceu os ombros. Pelo olhar que se estreitou. Pela respiração que se prendeu no peito.
Ele me olhou sem dizer nada, e eu senti.
A cidade de Uberlândia... respirou diferente.
E quando uma cidade respira diferente, alguma coisa grande está prestes a acontecer.
E o que quer que estivesse por vir… já havia começado.