A noite se aproximava, e eu me agarrava a ela como uma aliada, protegendo-me dos olhos daqueles que estavam a minha procura.
Cada estalo na mata, cada sombra alongada pela lua era um alerta. Eu remava como se pudesse me fundir ao próprio rio, desaparecendo entre os redemoinhos da correnteza.
Era como se eu tentasse fugir de tudo o que me perseguiu a vida inteira. Eu queria esquecer. Esquecer a fatura do cartão de crédito. Esquecer o cheiro da pólvora no ar. Esquecer os olhos de Nia lacrimejando no escuro do camburão.
Mas o passado nunca morre. Ele apenas se esconde nas sombras. O rio me conhecia. Ele conhecia os gritos que não puderam ser soltos, as correntes que rasgaram minha pele.
A água cortava em redemoinhos ao redor do casco do barco, enquanto sentia a correnteza tentando me puxar para trás, como se o próprio rio testasse minha determinação. Meu peito ardia, os braços doíam, mas eu não podia parar. Não agora. Não depois de tudo.
Me agarrei à única coisa que poderia me manter acima d’água: a esperança de encontrar Nia. O som do seu riso ainda estava em minha mente, misturado ao barulho das águas.
Minha respiração travou. A próxima remada precisaria ser certeira. Porque se eles me pegassem agora... Já era, não tinha para onde ir.
Quando deixei as águas, senti o frio me atravessar, meu corpo tremia. Algo estava estranho. Os arbustos não se moviam. A noite não respirava. O som do lodo sugando meus pés era a única coisa que quebrava o silêncio.
Meu corpo corria, mas minha mente flutuava três metros acima, vendo a cena como um filme de terror.
Parte de mim queria parar e gritar: 'É isso mesmo seus filhos da puta? É a mim que vocês querem?' Mas as pernas continuavam movendo sozinhas, traindo meus princípios. Eu sempre jurei que morreria de pé, não rastejando no mato como um animal acuado.
De repente, um clarão. A lanterna iluminou o meu rosto. Meu mundo desabou.
Olha só quem encontramos... Pereira provocou em voz baixa, se virando devagar para a direita.
E então, a cena que me quebrou por dentro. Nia, amarrada na árvore chorando. Benício ao lado, sorrindo.
Depois que terminarmos com você, será a vez dela.
Algo dentro de mim explodiu.
Seus desgraçados! Gritei, tentando avançar. Mas Silva chegou pelas minhas costas antes que pudesse reagir.
A dor explodiu na minha nuca antes mesmo de entender o que acontecia.
Os risos vieram depois.
Benício caminhava com a mão sempre próxima à arma, os olhos escaneando os rostos como se procurasse um motivo para atirar. Silva não falava, mas suava demais para o frio daquela noite.
Pereira me olhou me dando um última sentença:
Esse negócio de negro com orgulho demais nunca dá certo.
Ele ajeitou a arma na mão, com o olhar frio, e disse.
O mundo tá podre demais. Tolerância demais gera bagunça. Só tô adiantando o serviço.
Vida que importa é a que trabalha, paga imposto e obedece. O resto é só choradeira de vitimista.
Aqui é Brasil irmão. Aqui se não for pela ordem, é pela bala.
Então veio o clique seco da arma sendo engatilhada. O tempo parou. E tudo que eu pude sentir foi a explosão de uma dor incandescente.
O chão sumiu sob meus pés. O ar desapareceu dos meus pulmões.
Envolto na penumbra da cela improvisada onde me encontrava, sentia uma força me soltar do meu corpo e vagar inquieta, arrastando-me de volta a um passado que eu tentava esquecer, mas que agora se apresentava diante de mim com clareza.
Enquanto vagava pelo cerrado, fui levado de volta para aquele primeiro de julho de dois mil e dois...
Foi ali, no meio do nada, que a voz da minha avó Amélia me atravessou:
Escuta teu coração, menino. Quando tudo virar escuridão, é ele que vai achar o caminho.
Era o que ela sempre dizia. Minha mãe repetia do mesmo jeitinho, mas mais baixo, como quem faz uma prece:
Moyo, não deixes teu coração esmorecer. Não permitas que o arranquem de ti.
Naquela noite, lembrei do tinhorão no quintal de casa, a única planta que resistia ao sol rachado do verão e à bagunça que meu irmão e eu faziamos.
Eu era pequeno, devia ter uns sete anos, quando descobri que o traço podia marcar o mundo. Peguei um graveto seco e comecei a desenhar na terra batida, ali perto do pé de tinhorão. A folha do chão se abriu sob o risco, como se me ouvisse.
Naquele instante, eu entendi que desenhar era como escutar meu coração.
Minha avó viu da porta, sorriu com os olhos e disse:
Vai começar o jogo, menino?
Era a final da Copa do Mundo de dois mil e dois, o Brasil inteiro parou. Em casa, a gente era time de muita gente e pouco espaço. Mas cabia todo mundo.
Peguei uma folha de papel e desenhei todos juntos: minha mãe de turbante, meu pai com o radinho de pilha, minha avó com o pé em cima da almofada, meu irmão empilhado no sofá velho, e eu… ali, no canto, com o lápis na mão.
Quando o juiz apitou o fim, foi como se o gol fosse nosso. Não da seleção, mas da nossa família.
A gente se abraçou, riu, chorou, se perdoou um pouco, mesmo sem falar. E depois fomos todos juntos pra pizzaria.
Minha avó disse que ia ficar.
Tô com sono. Comam por mim.
Eu ainda me lembro do cheiro da massa, da calabresa com orégano, do barulho da TV passando os gols em reprise, da luz amarelada no rosto da minha mãe.
Meu pai animado, imitava Galvão Bueno, narrando os gols de Ronaldo.
Saímos de lá cheios tanto de comida quanto de felicidade. No carro, ainda absorvendo o clima de festa, meus pais conversavam sobre o nosso futuro. O mundo parecia em paz, mesmo que por uma noite. Mas em instantes, tudo mudou.
Foi rápido. Mas o tempo se esticou, como se quisesse que eu visse cada detalhe. O carro ao nosso lado. Meu pai segurando o volante. Meu irmão, mexendo nos cadarços do tênis. E eu feliz com a vitória do Brasil.
O grito da minha mãe foi cortado pelo primeiro tiro. Meu pai tentou acelerar, mas os pneus cantaram no asfalto molhado. Os faróis do outro carro nos cegaram por um instante – e então, o vidro traseiro explodiu.
Meu corpo foi jogado para frente, o peito esmagado contra o cinto de segurança. Gritos, os de minha mãe, os de meu irmão, os meus, mas todos abafados pelo barulho ensurdecedor dos disparos. O cheiro de pólvora e gasolina era como um pesadelo em câmera lenta.
Quando o veículo parou, três homens, disfarçados de policiais, se aproximaram. No olhar frio de um deles, a dúvida cruel de quem acreditava estar perseguindo criminosos. Mas éramos nós. Uma família, comemorando a vitória do Brasil. Nada fazia sentido. Nada podia desfazer o que já estava em movimento.
Os dias que se seguiram foram uma mancha de dor, de injustiça. Os homens que tiraram a vida da minha família foram julgados no Superior Tribunal Militar, sobre uma ação que teve duzentos e cinquenta e sete disparos e resultou em três mortes: de meu pai Evaldo, minha mãe Cláudia e meu irmão Eduardo.
Seus advogados alegaram que tudo não passara de um "erro plenamente justificado pelas circunstâncias", e que agiram em legítima defesa.
Eles teriam sido informados sobre um assalto na região e foram defender o cidadão de bem que havia sido roubado. Os policiais alegaram que haviam entrado em confronto com bandidos que fugiram. Na perseguição confundiram o carro da minha família, que já teria uma marca de bala, como a dos criminosos.
A defesa sustentou que os policiais estavam em missão, cumprindo ordens, que as circunstâncias os obrigaram a agir daquela forma. O Código Penal Militar foi usado como escudo, alegando que eles reagiram a uma ameaça imaginária, uma “legítima defesa putativa”. Um erro perdoado, um crime absolvido.
O relator do caso decidiu que não havia provas suficientes para condenar os acusados. E o sangue dos meus pais e de meu irmão se perdeu nos parágrafos frios de uma decisão judicial.
O policial que comandava a operação: tenente Pereira, aquele que deu a ordem final, seguiu sua vida. Ele permaneceu na corporação, protegido por sua patente, enquanto os outros dois foram expulsos.
E eu, ali, em meio aos destroços, só queria fugir de uma vida que me foi imposta, me sentido amaldiçoado por um destino que eu não escolhera.
Por muito tempo, essa memória foi um fardo pesado demais para carregar. Ela me arrastava para o abismo do medo, me prendia à inércia, como se eu estivesse condenado a reviver, dia após dia, o momento em que a violência policial assassinou a minha família.
A dor da perda, por tanto tempo sufocada, encontrou sua saída. As lágrimas que escorreriam por meu rosto foram a única válvula de escape, a tradução de um luto que parecia eterno. Mas, em meio a esse desespero, algo começou a se mover dentro de mim.
Foi então que uma pontada aguda do meu dente do siso me trouxe de volta à realidade.
Abri os olhos. Meu coração disparava no peito. Eu estava no quilombo. O refúgio que me acolhera, mas também o lugar onde os fantasmas do passado me encontravam.
Minha respiração era um tremor constante, como se meu corpo tentasse a todo custo recobrar o controle perdido.
A urgência da situação em que me encontrava ficou clara. Eu não poderia mais fugir, nem dos meus perseguidores, nem de mim mesmo.
Levantei-me do chão, ainda trêmulo, mas agora com uma nova determinação.
O som veio antes da visão. Me agachei instintivamente. Quando levantei os olhos, vi os faróis cortando o escuro.
A viatura desacelerou e parou perto da trilha de entrada, como carniceiros que farejavam a presa antes do ataque. Não havia mais espaço para dúvidas ou hesitação.
Pereira desceu primeiro do carro com calma. Cuspiu no chão, os olhos varrendo o escuro como se pudessem ver através das árvores.
Viu só Silva? Num falei? Isso aqui é coisa de quilombola, disse Pereira, cuspindo no chão de terra batida.
É sempre esse povo! Quando não é roubando, é chorando por direito, resmungou Benício, enquanto ajustava a arma.
As lanternas cortaram a trilha como faixas de luzes, tremendo sobre o mato molhado. Me encolhi atrás da janela, com o rosto colado à madeira.
Vamos acabar logo com isso tenente, disse Silva Eu podia ouvir as botas afundando na lama, os arbustos se mexendo. Eles estavam chegando perto.
Fechei os olhos por um instante. O medo queria me consumir. Mas não hoje, não agora. Meus olhos vasculharam o chão da casa. E lá estava ele: o facão de Seu Zé Ambrósio, esquecido no balaio.
Minha mão se fechou sobre o cabo. O peso do metal me deu esperança.
Dei o primeiro passo. Silencioso. O segundo. Ainda invisível.
Mas no terceiro... a porta gemeu. Um estalo seco cortou o silêncio. Como se o próprio quilombo me denunciasse.
O barulho pareceu ecoar dentro da casa.
A lanterna congelou. Um foco branco me expôs.
Ei! Cês ouviram isso? Sussurou Silva. A luz virou na minha direção.
Era eu ou ele.
Meus pés se moveram antes do pensamento. O braço acompanhou.
O facão cortou o ar como um arco. A lâmina encontrou carne.
O grito de Silva veio grave e rasgado. A luz caiu. A pistola escorregou de seus dedos trêmulos e bateu no chão de terra batida.
Ele cambaleou para trás. E antes que recuperasse o fôlego, me abaixei e agarrei a arma. O sangue nos meus dedos dificultava o movimento, mas eu consegui.
O peso da pistola agora era meu. O poder de ser maior que o medo tomou conta de mim. E eu nunca mais ia deixar que me fizessem sentir como uma presa.
Silva tombou de lado, gemendo. Segurava o braço como quem segura a vida.
Seu merda... Ele esbravejou com os dentes tremendo, tentando se arrastar para trás. Com os olhos arregalados ao ver a arma agora em minhas mãos.
Cê acha que vai sair dessa? Cuspiu sangue no chão. Cê não passa de um rato!
Minha mão apertou o cabo da pistola. O peito ofegante. O ar do quilombo parecia mais denso.
As lembranças vieram como um raio: O vidro estilhaçado.
O carro derrapando.
O sangue de meu pai escorrendo no volante. Minha mãe sobre mim, tentando me proteger. O grito de meu irmão no banco de trás.
Os assassinos vivendo suas vidas livres. E Silva se tornou um deles, servindo a mesma força que destruiu a minha família.
Eu deveria puxar o gatilho. Só um aperto. Mas, corri até a janela e saltei.
O vento frio mordeu minha pele, e a lama tentou me prender, mas eu não podia me dar a possibilidade de cair. Não agora.
Atrás de mim, ouvi a porta ser arrombada. A madeira explodiu em estilhaços, enquanto corria.
Os galhos rasgavam minha pele. A mata se fechava ao meu redor. O facão caiu da minha mão.
Minhas pernas se moviam por puro instinto de sobrevivência.
E então, ele estava ali.
O homem que ordenou a chacina da minha família e seguiu sua vida como se nada tivesse acontecido.
O primeiro tiro queimou meu ombro. Passei a mão e senti o sangue quente, escorrendo. Mas não parei.
Me escondi por trás da figueira. Mirei. Disparei. A bala encontrou a barriga de Pereira.
Ele caiu, gemendo, olhos arregalados. Se apoiou numa árvore, o sangue escorrendo entre os dedos.
A cena se distorceu diante dos meus olhos.
Era como estar ali de novo. Onde faróis cruzaram nosso caminho.
O medo que um dia me consumiu agora ardia dentro de mim como fogo.
Ele tentou se mover. Se arrastava. Mas o peso da dor o mantinha rente à terra.
Ouvi o barulho de motor ao longe.
A viatura se aproximava. Silva e Benício vinham juntos.
Outro tiro.
A bala passou a centímetros do meu rosto. Caí para trás, o impacto me arrancando o fôlego.
Acelera Benício! Ele não vai escapar! Rugiu Pereira de dentro da viatura. A dor misturada ao ódio o mantinha de pé.
A viatura se lançou atrás de mim. E podia ouvi-la se aproximando. As balas cortavam o ar ao meu redor, zunindo como vespas tentando me pegar.
O chão afundava a cada passo.
Eu podia sentir o carro se aproximando, prestes a me atropelar.
Então ouvi o estrondo. O pneu estourou.
A viatura girou, rodopiando na lama em minha direção.
À beira do precipício, o rio rugindo abaixo. Não havia como voltar. Não havia para onde ir. Meus pés perderam o chão.
O vento arrancou um grito da minha garganta.
Atrás de mim, o som da queda da viatura, os gritos dos policiais, os tiros, tudo despencando junto.
Tudo explodindo, de uma vez, como o fim de um pesadelo.
A água me engoliu como a cobra do meu sonho. A correnteza me virou de cabeça para baixo, esfregando meu rosto no fundo de cascalho.
Eu tentei nadar, mas os movimentos não correspondiam.
Talvez fosse assim que tudo terminava. E então, no fundo do rio, uma luz. Um clarão no meio do nada.
Foram segundos em câmera lenta. Estiquei a mão. Os dedos tocaram algo sólido.
E seus braços Aroyê, me puxaram para fora daquele clarão.
Quando abri os olhos, senti o som da queda d’água preenchendo tudo. Ainda tonto, pisando em pedras frias, levei um tempo até entender.
A gente estava na beira da Cachoeira de Sucupira.
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