Dentro da viatura, o ar era pesado. Pereira estava no banco da frente, com aquele maldito cigarro preso nos lábios, enquanto Benício dirigia, e Silva, no banco traseiro, mexia no gatilho da arma.
Aquele camburão era uma prisão ambulante, escura, apertada e sufocante. Pereira falava num tom quase cordial e isso tornava tudo ainda mais assustador.
—Estamos em guerra, senhores. Estamos em guerra, ele começou olhando o retrovisor. Me dói ver essa gente cometer auto genocídio. Esses porcos degenerados se destruindo em praça pública... e ainda chamam isso de progresso!
Benício bateu com força no volante.
O bom, tenente, é que daqui a pouco se matam sozinhos. Fica mais fácil pra gente.
Nia ficou em silêncio. A raiva dela não precisava de palavras. Enquanto eu tremia de ódio por dentro.
Pereira mantinha o rosto sério, mas os olhos brilhavam de prazer.
O problema Benício, é que o estrago que esses aí fazem é grande demais. Essa 'gente’... Ele pausou, como se o próximo insulto fosse um manjar que ele queria saborear. É um câncer. E o que se faz com um câncer?
Silva ajeitou o coldre da arma no banco de trás.
Extirpa senhor.
Pereira apenas inclinou a cabeça, satisfeito, antes de soltar a baforada pela janela.
Exatamente guerreiro. Estamos aqui pra limpar essa escória, e devolver a ordem que eles querem destruir.
Se o Estado é cego, então nós temos que enxergar por ele. E nosso olhar é guiado por Deus. Não se faz omelete sem quebrar uns ovos… e tem hora que a gema é vermelha mesmo.
Meu estômago se revirava. Para eles, não éramos pessoas. Éramos algo a ser apagado.
Silva, disse Pereira, soprando a fumaça devagar, manda a foto dos pombinhos no grupo da diretoria. Abre a caixinha das apostas. E já avisa: a ordem tá definida. Três pra cada um: você começa, depois eu, depois o Benício.
Silva pegou o celular, obediente. Tirou a foto, e respondeu: Entendido, senhor. Missão dada é missão cumprida!
Benício percebeu que eu estava olhando, e virou- se, rindo.
Garoto... Não adianta fazer essa cara de mártir.
No fim, vocês sempre perdem.
Eles queriam nos apagar, como se isso pudesse devolver o mundo à forma que desejavam.
Para Pereira, Benício e Silva, tudo era preto no branco, e eles estavam sempre do lado correto pelo menos na cabeça deles ou na de pessoas que pensam como eles.
Não havia luzes, nem sinais de vida. Só o som dos pneus esmagando o chão de terra batida. A estrada parecia interminável até que a viatura parou.
O silêncio era pior que o motor desligado.
A Cleópatra vai primeiro, disse Pereira, abrindo a porta da viatura:
Não vá muito longe. Vamos conversar com o seu namoradinho primeiro.
Ela olhou para mim. Os olhos lacrimejando de raiva. Antes que pudesse dizer algo, Benício riu e a empurrou para fora.
Vai princesa. Aproveita o passeio.
A porta bateu. A viatura seguiu. No retrovisor, vi Nia desaparecer na escuridão. Pereira virou-se para mim, o sorriso desprezível.
Sua vez moleque!
Benício desceu primeiro, rindo.
Dizem que vagabundo sabe correr da polícia.
Vamos ver se é verdade.
Eu não fiz nada! Vocês não podem fazer isso! Afirmei, sentindo o desespero tomar conta de mim.
Como é que é? A gente não pode, o que? Sua mão grossa acertou meu rosto. Meu ouvido zuniu.
Bafo de garganta não esquenta marmita. Agora corre... corre, vagabundo! Antes que eu meta uma bala na sua cara.
Meu corpo estava congelado, como se minha mente se recusasse a aceitar o que estava acontecendo. Mas então, o som de um tiro rasgou o ar, e meu corpo reagiu antes que eu pudesse pensar.
Corri. Corri como nunca havia corrido antes, meus pés mal tocando o chão. Cada passo parecia um grito, cada respiração, um pedido desesperado de sobrevivência.
A chuva fria batia contra minha pele enquanto eu corria pelo cerrado. A lama vermelha sugava meus pés, e o cheiro forte de terra molhada impregnava o ar. O vento uivava, acompanhado por trovões que rugiam à distância.
Mais rápido moleque! Gritou Benício.
Outro tiro foi disparado, desta vez mais perto. Senti o som passar ao lado da minha cabeça, um assobio que meu peito ameaçou explodir por dentro. Não havia tempo para pensar, nem para sentir o medo. Era correr ou morrer.
A estrada de terra parecia se estender infinitamente. O cerrado ao redor era cheio de sombras que pareciam se mover.
Cada folha que tremia ao meu redor podia ser o indício de um animal, uma seriema, uma jaguatirica, ou simplesmente o vento, brincando com minha mente.
Outro tiro foi disparado, acertando uma pedra à minha frente e levantando uma nuvem de poeira.
Meu peito queimava. Cada respiração parecia rasgar meus pulmões por dentro, como se eu estivesse inalando fogo. Meu coração batia tão rápido que eu mal conseguia ouvir os passos dos desgraçados atrás de mim.
Mas minhas pernas... Minhas pernas tremiam como se fossem feitas de gravetos finos.
Meus pensamentos estavam embaralhados, mas uma coisa era clara: eles estavam jogando. Eles queriam que eu corresse até não poder mais, até que a exaustão me derrubasse, e então eles terminariam o que haviam começado.
Avistei algo à frente, uma pequena trilha que se abria na mata, um ponto onde as árvores se fechavam como um túnel. Era minha única chance. Se eu conseguisse entrar ali, talvez pudesse me esconder, ganhar algum tempo.
O terreno irregular era traiçoeiro, com raízes grossas de pequis e buritis escondidas pela terra úmida. A trilha estreita serpenteava, margeada por arbustos de murici. Meu corpo decidiu por mim.
Corri. O problema é que eu não sabia para onde.
Os galhos batiam no meu rosto, cortavam meus braços. O chão estava escorregadio, traiçoeiro, como se quisesse me derrubar. E então, o medo bateu de verdade.
Girei a cabeça para trás. Nada. Girei para frente. Nada.
O som da minha respiração parecia alto demais, como se o próprio cerrado estivesse me escutando.
Eu sentia que alguém, ou alguma coisa, estava ali. O farol cortou o escuro.
Eles estavam na minha cola.
O brilho da lanterna varreu o mato, e eu só tinha uma opção: me jogar no chão e torcer para me confundirem com a terra.
Me joguei no buraco entre as raízes do pequi, meu corpo afundando na lama quente. O cheiro de terra úmida e raízes apodrecidas invadiu meu nariz, mas eu não podia me mexer. Não podia respirar alto. Muito menos ser visto.
Se eles olharem para baixo, acabou.
Cadê esse merda? Rosnou Benício, a voz baixa e irritada, enquanto olhava o mato com a lanterna.
Silva coçou a cabeça, inquieto, e respondeu:
Sumiu...
Não sumiu não, rebateu Benício, com os olhos fixos no chão. Tá por aqui.
O silêncio foi interrompido pelo rádio.
O tenente mandou recuar, informou Silva, apertando o aparelho com força.
Benício ergueu a cabeça, franzindo a testa.
Certeza? Perguntou, desconfiado, como se esperasse outra ordem a qualquer momento.
Eu fiquei parado, tentando não respirar alto.
Quando finalmente soltei o ar, percebi que nunca na vida tinha sentido tanto medo.
Benício chutou um galho seco ao lado e disse:
Ele não foi longe... tem rastro fresco aqui!
As vozes deles vinham cada vez mais próximas. Silva esticou o pescoço, os olhos arregalados:
Tem... tem alguma coisa estranha aqui...
A luz da lanterna vacilou, tremendo junto com a mão dele.
Os passos esmagaram folhas secas bem acima de onde eu estava escondido.
Tem pegadas nessa direção! Vamos logo! Ordenou Benício, já avançando.
Eu não me mexi. Continuei ali, cravado na lama, com o corpo colado ao chão.
Um galho se partiu com um estalo seco.
Mas não fui eu. Algo ou alguém se moveu entre as árvores.
Os dois pararam.
Silva virou devagar, com o dedo no gatilho.
Que porra foi essa? Seus olhos arregalados procuravam por algo no mato.
Benício, sempre debochado. Ah moleque, não vai me dizer que tu tem medo do escuro? Isso aí é o vento garoto. Cresce.
Outro gemido, mais alto dessa vez. As árvores ao redor balançaram, as sombras dançando como fantasmas no chão.
Tá, e o vento também sabe gemer? Silva rebateu, a voz trêmula.
Benício deu uma risada nervosa. Sei lá, deve ser… bicho. Talvez um lobo-guará...
A sombra se moveu à frente deles, deslizando entre as árvores como fumaça. Silva apontou a arma, mas sua mão tremia tanto que o cano balançava como um pêndulo.
Atira Silva! Gritou Benicio do fundo, mas sua própria voz parecia menos autoritária do que de costume.
Atirar no quê caralho? Isso não é gente! Silva gaguejou, dando um passo para trás.
O som dos bambus aumentou, um ranger constante que parecia mais um coro. Silva tropeçou em uma pedra, xingando baixinho.
Tô te falando, Benício... Isso aqui tá errado. Eu não vim pro mato pra lidar com assombração não.
Assombração é o caralho moleque! Pereira rosnou, chegando de mansinho por trás.
Tá ouvindo isso, tenente? Silva perguntou.
Claro que tô ouvindo porra! Pereira respondeu, olhando nervoso para o mato.
De repente, um galho quebrou ao lado deles, e Silva pulou como se tivesse levado um choque.
Quem tá aí? Gritou Benício, apontando a arma para o vazio.
As sombras começaram a se mover, projetadas pelas árvores altas, criando formas que pareciam gigantes.
As árvores balançavam, e as folhas pareciam rir. Os policiais avançavam devagar, com as lanternas piscando.
Isso tá parecendo mais um filme de terror tenente, Benício resmungou.
Filme de terror o caralho. É só um vagabundo no mato. Pereira olhou para os lados, mas seu dedo nervoso no gatilho o denunciava.
De repente, as árvores à frente se abriram, e um vulto passou correndo de um lado para o outro, rápido demais para ser identificado.
Que porra foi essa? Silva gritou, disparando sua arma no vazio.
Benício caiu para trás, segurando o peito como se tivesse levado um tiro. Foi um espírito! Tô te falando, essa merda tá amaldiçoada!
Tenente, essa porra tá errada… Reclamou Silva, sua voz soando como um garoto que acabou de quebrar o vidro da janela e sabe que vai apanhar.
Cala a boca, Silva. Vai dar um tiro no vento agora, porra? Pereira respondeu, mas não soava tão firme quanto antes.
De repente, um estalo. Algo quebrou à esquerda deles, e, como uma reação automática, Benício disparou dois tiros. A luz das balas iluminou brevemente as árvores, mas não revelou nada. Nada além de mais sombras.
Cacete, tá vindo por trás! Gritou Benício, girando sobre os próprios pés e quase tropeçando em um galho.
Tá vindo por trás de quê, idiota? Tá alucinando?
Pereira cuspiu as palavras, mas a tensão era evidente.
A sombra ou o que quer que fosse estava jogando com eles. Cada ruído, cada movimento entre as árvores, fazia com que eles apontassem para direções opostas. E a mata, parecia se fechar ao nosso redor.
Outro estalo, agora mais próximo. Benício girou tão rápido que deixou cair o coldre da arma.
Ah, fodeu! Essa merda tá me cercando! Ele gritou, como se esperasse ver a própria morte saindo de trás de uma árvore.
O silvo de uma coruja-do-mato cortou o silêncio. Silva disparou sem pensar, o som do tiro rasgando a noite não acertou na coruja, que simplesmente desapareceu.
Porra, Silva! Gritou Pereira, injuriado. Tu tá atirando em quê, caralho? Numa coruja, porra?
Foi então que o vento parou. Não diminuiu, mas parou completamente. E no meio desse silêncio, um som novo surgiu. Algo arranhando as árvores, lento e deliberado.
Tenente, eu vi! Juro que vi! Tinha uma coisa ali, se mexendo! Silva gritou, enquanto apontava a arma para o nada.
Uma coisa? Tu é sujeito homem ou moleque?
Pereira esbravejou.
Tenente… Acho que a gente devia voltar... Começou Silva, mas foi interrompido por outro ruído. Benício largou a lanterna e começou a voltar, tropeçando em cada galho no caminho.
Foda-se isso aqui! Eu não vou morrer nesse mato, porra! Ele gritou, enquanto desaparecia na direção da viatura.
Volta aqui, seu frouxo! Gritou Pereira, mas até ele estava recuando.
Virei o rosto bem a tempo de ver Silva sumindo.
Do nada. Só ouvi o impacto. O som seco da carne encontrando a madeira. O gemido de dor.
Benício arregalou os olhos. Pereira travou a respiração. Eu... bem, eu tive que morder a própria língua pra não rir.
Silva caiu num buraco camuflado. Um tipo de arapuca feita com lanças fincadas no chão.
AAAAAAH!
O grito dele veio abafado.
ME TIRA DAQUI, CARALHO!
Pereira e Benício se aproximaram com cautela, iluminando o buraco. Silva estava lá, preso como um tatu pego na boca do buraco. O pé dele tinha ficado preso entre duas lanças, sem furar, mas o bastante pra imobilizá-lo. Se tentasse mexer, perfurava o próprio tornozelo.
Puta que pariu, Silva… como é que tu me cai numa merda dessas?! Perguntou Pereira.
Silva gritava, desesperado.
FOI FEITIÇO! FOI FEITIÇO, TENENTE!
Feitiço é tua cara de otário.
O problema é que, enquanto discutiam, o cerrado não se calava. O vento uivava, arrastando poeira e folhas secas pelo solo. Os arbustos se moviam inquietos, sombras dançavam sob os relâmpagos. Uma tempestade estava prestes a cair.
Pereira limpou a lama das botas com um chute brusco na grama molhada e rosnou algo entre os dentes. Benício ajustou o cinto, lançando um olhar desconfiado para os galhos retorcidos ao redor. Silva hesitou por um instante, mas um trovão distante fez com que ele seguisse os outros dois.
Sem mais palavras, voltaram para a viatura.
Enquanto os policiais sumiam no horizonte, me virei e corri na direção oposta. Mas, ao contrário deles, eu não tinha para onde voltar. Não havia nada esperando por mim. Só o cerrado do Triângulo Mineiro, e o que quer que estivesse dentro dele.
A chuva começou a cair grossa e pesada, transformando a terra em lama e borrando meus sentidos. Cada relâmpago iluminava o caminho por breves segundos, apenas para mergulhá-lo em escuridão. Meu coração batia tão forte que eu mal conseguia ouvir os sons ao redor.
A mata fechada me engoliu, os galhos arranhando minha pele e as sombras me confundindo a cada passo. Cada gota de chuva que me encharcava, me levava mais perto da liberdade, ou para mais longe de uma vida que eu não reconhecia mais como minha.
Eu corria sem rumo, enquanto o mato me arranhava, a lama grudava nos pés, e a respiração saía cortada, como vidro moído na garganta.
Mas, de repente… algo mudou.
O cheiro do ar ficou diferente. Um cheiro de terra molhada, mas doce, como se alguém tivesse acabado de varrer o chão com folhas de mangueira.
O vento soprou mais forte.
Mas não como antes, bagunçando tudo.
Como se me empurrasse para um único lugar. E então, eu vi.
Pequenas casas de taipa, se seguiam cobertas pela vegetação, escondidas no coração do cerrado mineiro. Era um Quilombo. Eu sabia que era. Era como se a própria vida tivesse me trazido até ali.
A primeira coisa que me atingiu foi o cheiro familiar de arnica que me trouxe uma lembrança distante. Eu me vi criança, jogando bola na rua, e o asfalto quente rasgando a pele do meu joelho. Minha avó veio correndo, com o remédio em mãos. O toque dela era um momento de carinho e dor, enquanto a arnica queimava na ferida.
O lugar estava calmo, como se a própria tempestade respeitasse o momento. O aroma de milho cozido era um indício de que alguém havia estado ali.
As palhoças estavam mergulhadas na penumbra, suas paredes de barro brilhando sob a chuva como pele molhada. O chão de terra batida transformado em lama.
Uma porta rangeu ao longe, rompendo o silêncio como um gemido. Parei, meu corpo tenso, cada músculo pronto para reagir. Mas era apenas o vento.
Ao me aproximar de uma das casas, um calafrio percorreu minha espinha. As paredes eram adornadas com garrafas de vidro cobertas por tecidos coloridos, e com cestas de palha tecidas à mão. Os potes de barro que guardam a água fresca do dia. Panelas sobre um fogão a lenha, redes pendendo como ninhos, e um aroma adocicado de rapadura no ar.
No centro da casa, uma mesa estava posta, os restos de um banquete ainda espalhados sobre ela. Minha fome, que até então fora abafada pela tensão do momento, rugiu como uma fera faminta.
Aproximei-me com cuidado, quase reverente. O pão rústico, o tutu de feijão, os legumes frescos, as mandiocas fritas tudo parecia uma oferenda deixada para um forasteiro em desespero.
Com licença, murmurei para o vazio, como se pedisse permissão aos que haviam estado ali antes de mim.
Sentei-me e comi, cada mordida um alívio, cada gole um tributo à minha sobrevivência. A água, que saciava a minha sede, o sabor terroso da mandioca. Ali, entre aquelas paredes de barro, encontrei algo que me havia escapado há muito tempo.
Meu corpo menos tenso, clamava por descanso. Uma rede pendia no canto do cômodo, estrategicamente posicionada de frente para a janela. Dali, eu poderia vigiar qualquer aproximação. O balançar suave da rede me envolveu, como o colo de uma mãe protetora.
Só um pouco, sussurrei para mim mesmo, lutando contra o sono.
Mas a cada oscilação, a exaustão vencia. Os sons da tempestade lá fora, antes tão ameaçadores, agora pareciam canções de ninar menino grande. O vento sussurrava em meus ouvidos, e as gotas de chuva marcavam o compasso. Mesmo sabendo dos perigos, minha mente se entregou ao cansaço.
Senti o corpo ceder à exaustão. Meus olhos pesavam, e a mente, antes alerta, começava a flutuar. O sono finalmente me venceu, e o silêncio do quilombo se tornou meu guardião.
O tempo parecia ter se dissolvido, minha mente se entregou à escuridão. Até que o som distante de pássaros e passos suaves me trouxe de volta à superfície.
O sol, já alto, emprestava à paisagem um brilho dourado, suas luzes sobre o chão batido do quilombo e a se infiltrar pela minha janela entreaberta, tocando minha pele com a promessa de um novo dia.
A luz da manhã se derramava pelo espaço, dourando os cantos da casa e revelando sua essência. As cuias de madeira, alinhadas na prateleira. Sobre a mesa, a rede de pesca descansava trançada. A cortina de renda ondulava no ar, dançando ao ritmo do vento e do canto dos pássaros.
Eu, ainda na rede, sentia a preguiça se dissipar com o esticar de cada músculo, uma brisa suave entrando pela janela e trazendo consigo os sons e os cheiros que me despertava ao compasso da vida que se renovava lá fora.
Uma voz acolhedora preencheu o ar da manhã: “Bom dia jovem, encosta aqui, tem café.” Mesmo sem saber quem era, um sorriso se formou em meus lábios. Levanteisentindo uma energia renovada. E naquele momento, ele apareceu na porta colocando um facão no balaio, com um olhar tranquilo que parecia compreender tudo.
“Eu sou Seu Zé Ambrósio. Vejo que você encontrou nossa rede. Ela tem o dom de embalar os cansados. Mas fique tranquilo, aqui é lugar de descanso e recomeço.”
Sua presença era tranquila, como a paisagem ao redor. Seu olhar profundo parecia atravessar por dentro, como se já soubesse o que se passava no meu coração.
Seu Zé, aproximou-se e estendeu uma mão em um gesto de solidariedade. “Você não está sozinho rapaz. Aqui, no quilombo, somos todos uma grande comunidade. E agora, você também faz parte dela.”
“Tem café, têm queijo, têm pamonha, têm melancia, senta aqui, vamos conversar, ele me chamou para sentar com ele na varanda que se abria pela porta da cozinha.
Rapaz, hoje o sol está muito quente, hoje eu não vou trabalhar não. Vamos tomar uma cachaça?
A proposta era inusitada, considerando a hora do dia, mas havia um humor nela que me fez rir. Seu Zé, um senhor de pele curtida pelo sol e rugas que mapeavam histórias vividas, me olhava com uma expectativa nos olhos.
Peguei uma fatia generosa de queijo, junto a uma xícara fumegante de café.
“Ontem à noite,” ele começou, com a voz calma, “estava aqui no quilombo quando os tiros romperam a quietude da noite. Minha primeira preocupação foi proteger nosso lugar, nossa gente.”
Ele pausou, talvez revivendo aqueles instantes, antes de continuar. “Corri para ver o que estava acontecendo. Da borda do mato, vi os disparos. Eram da polícia, tentando acertar alguém.
“Depois que você entrou na floresta, fiquei de campana, observando. Queria ter certeza de para onde os policiais iriam, garantir que não voltassem para causar mais problemas.”
“Eles pareciam mais perdidos do que cego em tiroteio,” ele comentou, e o humor suave na sua voz trouxe uma leveza inesperada.
“E então, depois de ter certeza de que não havia mais perigo, voltei para cá. E foi quando te encontrei, adormecido na rede, como se fosse um dos nossos.
“Mas e agora Seu Zé? Como saio daqui? Eles vão continuar atrás de mim,” confessei, com o medo e a incerteza pesando na minha voz.
Seu Zé balançou a cabeça com calma. “O caminho de volta não é só sobre escapar.”
Estou cansado de ser tratado como um delinquente, Seu Zé.
Dizem uns zé povinho por aí: O mérito fala mais alto! Vai na fé irmão, vai na fé... É só dar o melhor de si!
E ter que fazer tudo em dobro.
E ainda sem ter o privilégio de errar.
Ninguém que ser tratado como um Zé Ninguém.
Mas veja bem Seu Zé, não é uma questão de mimimi ou em como as coisas deveriam ser.
Eu estou no bico do casco, carrego comigo muitas dívidas e problemas a serem resolvidos, além de ser um puta hipócrita, em saber de todas essas coisas e ser arrastado pela própria caminhada.
Sussurrei, quase para mim mesmo: “Eu preciso encontrar Nia.” Com o medo e a esperança misturados nas palavras.
Seu Zé olhou para mim, confiante: “Você vai encontrá-la. Mas, primeiro, precisa encontrar a si mesmo.”
Olha meu filho, a história de cada um tem a ver com a maneira em como reagimos”, ele começou, sem tirar os olhos de mim.
Uma pergunta sempre me corroía por dentro: como nossos ancestrais sobreviveram até chegarmos aqui?
Foram arrancados da terra que conheciam. Atravessaram mares que não tinham nome, levados à força para esse lugar chamado América. Passaram pela árvore do esquecimento, forçados a esquecer quem eram. Viram suas famílias serem jogadas em direções opostas como folhas ao vento.
Como suportaram o confinamento? Enrolaram seus corpos em correntes, apagaram seus nomes. Botaram pessoas com línguas diferentes para não se comunicar. Não queriam que falassem, que se reconhecessem, que lembrassem quem eram.
Mas a natureza nos traduziu.
Através das plantas e dos animais percebemos que temos em comum a relação com os demais seres. Pelo vento que carrega histórias, pelas águas que conectam caminhos, pelo som das folhas sussurrando ao amanhecer, com a terra que guarda memória. Os povos daqui também têm está conexão.
Mesmo com línguas diferentes, a natureza é o que nos une.
Então quando menos se esperavam, nasce Palmares, como se fosse uma Améfrica.
Como é que esse povo conseguiu isso?
Aí foram lá. Cercaram e tacaram fogo em Palmares. Mas as cinzas não apagam a nossa memória.
Porque de repente, Campo Grande aparece. E a luta renasceu. Um tempo depois tacam fogo em Campo Grande, mas surge o Buraco do Tatu.
Pensaram que acabariam com tudo quando atacaram Catucá. Mas então, surgiu Ambrósio e com ele, a convicção: toda vez que tentam nos destruir, a gente volta. E volta mais forte.
Os colonialistas que chegaram por aqui, e aqueles que também estão atrás de você não confluem com a gente. O mundo deles só cabe uma certeza, só cabe uma verdade, e um jeito de ser.
Enxergam numa só direção e pensam de forma linear. Aí têm limite, porque é como eles pensam né, na linha reta, no final da linha, e no seu limite. Quem está em cima sobe, e quem está embaixo meu amigo, que se cuide, pois o trem desce.
Diferente deles, nossa ancestralidade vem da circularidade. Por exemplo, o samba não é rodando? A gente dança rodando, a capoeira é rodando, o reggae é rodando, a gira no terreiro é rodando e até meus cabelos quando estão grandes também crescem rodando.
Por um breve momento, deixei uma faísca de esperança se acender dentro de mim. Talvez as respostas realmente viessem. Talvez esse lugar fosse o começo de algo maior do que eu poderia entender.
Venha comigo meu jovem, quero te mostrar algo na mata!
Adentramos novamente na mata entorno do quilombo, encontrando-o à sombra de uma figueira- de-bengala.
“Seu Zé,” começou, sua voz carregando o peso de uma revelação pessoal. Foi lá, naquele lugar, que comecei a questionar as inquietações que carrego dentro de mim.”, apontou para a o rio Uberabinha.
Seu Zé acenou com a cabeça, um sorriso gentil tocando seus lábios. “A natureza tem esse poder. Ela nos ensina sobre crescer conforme nossas próprias direções.”
As árvores não competem entre si; elas apenas crescem. E assim como elas, temos o direito de buscar nossa própria luz, de florescer no nosso tempo, mesmo quando a vida nos coloca desafios pelo caminho.
Não se trata apenas do que vem de fora, mas também das barreiras internas, aquelas que a gente precisa atravessar, transformar e aprender com elas.
“Cada um de nós, à sua maneira, é um rio buscando seu curso, um aprendiz diante das lições que a vida nos oferece.”
E ali estava eu, pronto pra seguir o meu mesmo sem saber exatamente onde ele ia dar.
Seu Zé me levou até um atalho atrás das bananeiras.
Segue a trilha até achar três pedras empilhadas. Vira à direita, desce o barranco, e o rio tá te esperando. Às águas vão te guiar de volta à cidade de Uberlândia, disse ele, apontando para a barca amarrada na margem.
Ele não me abraçou - apenas encostou nossas testas por uns segundos, e me disse: “A resistência é como um sintoma meu filho. Que a vida o empurre como um galho quebrado na correnteza do rio.
E antes de me soltar, completou:
E lembre-se: seja prudente como as serpentes… e simples como as pombas.
Quando cheguei na margem, a canoa já estava lá, amarrada com uma corda que se soltou sozinha quando me aproximei.
A barca rangeu sob meu peso quando subi. Com um último olhar para a margem, soltei as amarras. A corda escorregou pelos meus dedos, áspera, e afundou na água.
A correnteza me puxou e o barco deslizou, enquanto as águas escuras se abriam ao seu redor.
Olhei para Seu Zé, que permaneceu à margem, seu rosto sereno, mas os olhos carregados de algo que ia além de despedida. Por um momento, senti que ele sabia mais sobre meu caminho do que eu mesmo.
Ele acenou com a cabeça, um gesto simples, mas cheio de confiança. Enquanto a distância entre nós crescia, e ele desaparecia da minha vista, uma lágrima tímida escorreu do meu rosto. E, por algum motivo, isso me deixou inquieto.
A brisa noturna soprou forte, fazendo as folhas das árvores balançarem como se estivessem cochichando entre si. O cheiro de terra molhada se misturava ao do rio, e por um instante, o ar pareceu mais pesado.
Olhei para trás uma última vez.
A margem já começava a desaparecer, Seu Zé ficando cada vez menor. A névoa rasteira do rio começou a subir, tornando tudo mais difuso.
Por um momento, pisquei. E ele já não estava mais lá.
Uma onda de arrepio subiu pela minha nuca. Será que eu tinha piscado por tempo demais?
A correnteza ficou mais forte, e o barco avançou para o desconhecido. O vento carregou um som estranho, vindo das árvores ou talvez da própria água.
Eu não sabia dizer.
Respirei fundo e segurei os remos. O rio, agora, era meu único caminho.
Mas o que me esperava além daquela curva?