Aroyê me olhou por um tempo.
Não havia pressa nos olhos dela. Nem julgamento. Só aquele silêncio que se enrosca no peito antes de qualquer palavra nascer. Ela não disse nada de imediato. Apenas respirou fundo como quem tenta processar cada imagem que eu tinha acabado de despejar.
O peito dela subia e descia devagar, mas os olhos... os olhos pareciam fixos em algo que ia além de mim. Como se ela enxergasse, ali, tudo que eu não consegui dizer.
Depois de longos segundos, ela se projetou levemente, como quem busca atravessar a distância com o olhar. A luz fraca refletia nos seus cachos e criava sombras no rosto.
Tem coisa que a gente não devia precisar dizer pra ser entendido, Moyo... Mas a gente sempre tem que provar que sangra?
Sua pergunta era uma constatação. Uma tentativa de nomear o que, até então, só doía.
A real é que eu também não tinha noção. Mas foi aí que tudo começou a se revelar.
O pânico tomou conta da praça Clarimundo Carneiro como fogo em palha seca, consumindo cada canto em questão de segundos. Gritos se sobrepunham, cada um mais alto que o outro, misturando-se ao som das pessoas tropeçando e caindo umas sobre as outras. Vi mães puxando crianças pela mão, casais se separando na multidão, que se dispersava como fumaça ao vento.
Por um instante, fiquei paralisado. Tudo parecia girar ao meu redor: As luzes vermelhas e azuis da viatura policial, ela fantasiada de Cleópatra, pessoas em desespero, o som da correria. Tudo era movimento, exceto um policial, que estava imóvel no centro da praça. Seus olhos varriam o ambiente com desprezo. Os soldados ao redor pareciam orbitá-lo, como satélites em torno de um planeta. Eles o chamavam de Tenente Pereira.
Ele tinha o corpo treinado para matar: uma postura rígida que denunciava sua autoridade e um olhar que parecia perfurar a alma de quem ousasse enfrentá-lo. Os soldados não o seguiam apenas por obrigação; havia um ar de devoção ao seu redor, como se ele fosse mais um profeta do que o comandante.
Os outros dois policiais que o seguiam como papagaios piegas bem treinados não desgrudavam dele. Um se chamava Benício, era um homem de estatura mediana, mas sua presença parecia maior. O rosto redondo, marcado por rugas prematuras, carregava uma cobra na língua. O bigode fino, cuidadosamente aparado, fazia com que ele parecesse uma caricatura de si mesmo, mas o olhar traiçoeiro revelava o perigo que ele representava.
Ao contrário do tenente, Benício tinha um ar desleixado, como se não se importasse com as aparências. Seu colete estava manchado de gordura e poeira, e as botas gastas.
Silva era o recruta do trio, mas sua aparência não deixava transparecer inexperiência. Com traços de um jovem de vinte e poucos anos e um olhar vazio, ele parecia carregar o peso de decisões que haviam endurecido seu coração antes do tempo. A cicatriz que atravessava sua sobrancelha esquerda era um lembrete mudo de uma violência que ele não se importava em esconder.
Seu uniforme estava limpo, mas suas mãos tremiam levemente, como se ainda não tivesse se acostumado ao peso do poder que carregava. Os olhos, embora fixos e sérios, tinham um sutil incômodo de algo que poderia ser arrependimento — ou o resto de uma humanidade que ele tentava enterrar.
O trio parecia funcionar como uma máquina bem orquestrada, cada um cumprindo um papel que tornava o grupo ainda mais perigoso. Pereira a mente calculista; Benício, a força bruta; e Silva, o executor.
Quando os olhos do tenente Pereira cruzaram com os meus, senti meu coração do tamanho de uma ervilha.
Peguem esses dois agora! Ele gritou, apontando diretamente para nós.
O olhar de Aroyê se estreitou:
Pera aí.
Nem perguntaram nome, signo, nada? Só olharam e decidiram que era temporada de caça?
Pra eles, nossa cara já é confissão respondi, engolindo o nó que subia.
Ela balançou a cabeça, mordendo o lábio inferior.
Benício e Silva já se divertiam como crianças com um brinquedo novo, disparando spray em direções aleatórias enquanto as pessoas se debatiam ao redor.
O cheiro químico invadiu minhas narinas antes mesmo de os efeitos chegarem aos meus olhos. A ardência era insuportável, um fogo que parecia consumir os pulmões por dentro. Ao meu redor, as pessoas tossiam, tropeçavam e fugiam, dispersando-se como baratas fugindo da luz.
Nós tossíamos e lutávamos para manter os olhos abertos, o gás ainda queimando em nossas gargantas e olhos, mas, ela encontrou uma brecha estreita.
Aqui, rápido! Ela me puxou pelo braço e mergulhamos na massa de foliões.
O policial mais perto, o Benício, tentou avançar, mas uma mulher fantasiada de baiana esbarrou nele com uma bandeja de chopp. O líquido respingou no uniforme, e ele xingou, perdendo segundos preciosos.
Vira aqui! Ela me arrastou pra um beco entre duas casas de tijolo aparente, tão estreito que tive que virar de lado.
Ouvimos os passos pesados do Silva atrás, mas o bairro Fundinho era traiçoeiro: em três voltas, até eu já não sabia onde estávamos.
Ele corria atrás de nós como se a nossa captura fosse uma obsessão pessoal. Eu podia ouvi-lo gritar, suas palavras eram abafadas pelo som dos nossos passos e da confusão, mas seu tom dizia tudo.
Era como se ele nos odiasse, não apenas por quem nos erámos, mas pelo que nós representávamos. Para ele, não éramos pessoas, mas um símbolo de tudo que ele desprezava, de tudo que escapava ao seu controle.
De repente, um baque atrás de nós. Silva tropeçou e caiu, e depois gritou de frustração, xingando a tudo e a todos. Eu olhei para trás por um instante e vi em seu rosto um ódio que não era só nosso; mas também para todo o carnaval.
Mas não havia tempo para respirar direito e desacelerar. Benício estava cada vez mais perto, sem perder o ritmo da passada. Quando parecia que seríamos alcançados, um caminho se formou à nossa frente, cortando o aglomerado de gente. Era a nossa chance.
Cada rosto que se voltava em nossa direção era um possível delator.
O calor do esforço fazia minha pele grudar nas roupas ensopadas de suor. O som de nossos corações martelando nos peitos era mais alto que o dos nossos pés contra as pedras de paralelepípedo. Mais alto até do que o mundo ao nosso redor. Era um alarme interno, uma contagem regressiva.
A rua se esticava diante de nós como um caminho infinito. Minha mente oscilava entre o presente o som dos passos e a incerteza do que viria pela frente. A noite começava a engolir os contornos do meio fio do passeio, transformando cada passo em uma aposta no desconhecido.
E então, do nada, ao nos aproximarmos da próxima esquina, um som abafado cortou o silêncio, vindo de algum ponto logo à frente.
Era como um deslocar de algo no chão, seguido por um ruído baixo, mas suficiente para congelar o sangue em minhas veias.
Nosso fôlego estava se esgotando, cada passada era um tiro no escuro. Então, o som do cavaquinho soou, e a luz amarelada do toldo listrado surgiu à nossa frente como uma miragem. O Bar do Macalé estava aberto.
Assim que atravessamos as portas do bar, a polícia ficou do lado de fora, como um filme que foi pausado bruscamente. Parecia surreal que a confusão da praça estivesse apenas a algumas quadras dali.
Cada pessoa parecia estar vivendo sua própria euforia, mas entre nós, a alegria era mais contida, quase clandestina.
O barman nos lançou um olhar demorado, mas não disse nada. Passou o pano no balcão com preguiça e nos ignorou.
O bar fervilhava de foliões suados, sambando desengonçados nas fantasias que já começavam a desmanchar sob o calor.
Pedi uma água e uma cerveja sem pensar muito. Meu coração ainda batia feito tambor de escola de samba, e o dente do siso latejava no ritmo do medo.
Aroyê me olhou de lado, tentando não rir.
Tentando e falhando miseravelmente.
Espera. Ela disse, abafando a risada com a mão. Deixa eu ver se entendi. Vocês fugiram da polícia, quase rodaram bonito, e a primeira coisa que você fez foi... pedir uma cerveja?
Eu tava com sede! Além do mais, precisava parecer um folião. E sumir no meio do povo.
Aroyê arqueou a sobrancelha, aquele sorrisinho torto surgindo no canto da boca.
Ah, sei. E a mulher que estava contigo? Também achou que dar um gole de disfarce era o plano perfeito?
Olhamos para o copo de cerveja como se ele pudesse nos salvar.
E francamente...
Eu também estava gostando dela, gostando daquele momento com ela, como se um gole de coragem pudesse mesmo mudar o rumo das coisas.
No fundo, a gente sabia que não podia.
Ela ajeitou o cabelo molhado, o olhar de quem mede a distância até o próximo problema e, talvez, até mim.
Ela me encarou por um instante longo demais, como se estivesse conferindo se eu ainda estava inteiro. Não consegui evitar um pequeno sorriso. Estávamos vivos. Pelo menos por enquanto.
Ela virou-se para mim, a voz abafada pelo samba que preenchia cada canto do bar.
Você acha que eles nos seguiram até aqui? Perguntou, num tom ofegante.
Balancei a cabeça lentamente, tentando parecer mais confiante do que realmente estava.
Acho que não.
Mas minha voz traiu a certeza. Na verdade, eu não tinha certeza de nada. Era mais um desejo do que uma afirmação.
O perigo lá fora parecia distante por um momento, como se as paredes do bar nos protegessem de um mundo que não fazia sentido. Mas o que realmente me prendia ali não era a sensação de segurança. Era algo que eu não conseguia ignorar.
Nossas mãos se encontraram sobre o balcão, por acidente, ou talvez não. Foi um contato breve, e nenhum de nós se apressou a soltar.
Vai da certo, disse ela, apertando minha mão com mais força, como se quisesse transferir parte da sua coragem.
Eu tentei responder, mas as palavras pareciam inúteis. Em vez disso, dei um riso nervoso, tentando aliviar a tensão que crescia dentro de mim.
E se procurarem a gente por aqui?
Ela se inclinou mais perto, os lábios a centímetros do meu ouvido, e disse:
Então vamos dar a eles um motivo para lembrar de nós. Sua voz carregava uma intensidade que fez meu coração saltar.
Antes que pudesse reagir sua mão deslizou pela minha, puxando-me gentilmente. Havia algo nela que me desarmava por dentro. Ela não era apenas bela, isso era evidente. Ela era uma tempestade, um sopro de vida que não se podia ignorar.
Seguimos pela massa de corpos dançantes, ela abrindo caminho com a destreza de quem sabia exatamente para onde estava indo. Parecia que o mundo se dobrava à sua vontade.
O barulho, a música, os risos, tudo se misturava, mas tudo parecia menor quando ela estava perto.
Ao chegarmos perto do palco, onde a música vibrava com mais intensidade, ela virou-se para mim, um sorriso travesso brincando em seus lábios:
Vai ficar só olhando? Se deixando levar no embalo do samba.
Travei por um segundo, sentindo o peso do momento, mas o sorriso dela era como um ímã.
Comecei a me mover, desajeitado no início, mas logo a energia do samba e a presença dela me envolveram. Ela dançava com uma graça que parecia natural, como se o ritmo fosse parte dela.
Você é sempre tão sério assim? Provocou, com um sorriso.
Só quando estou fugindo da polícia, respondi, tentando mascarar meu nervosismo.
Então, a gente vai dar um jeito nisso, disse ela, rindo, antes me puxando para dançar.
Já que estamos no meio dessa bagunça... posso pelo menos saber seu nome?
Ela riu, um som leve e descontraído que parecia limpar o ar ao nosso redor. Nia. E o seu?
Moyo. Respondi, sentindo um sorriso formar-se no rosto.
Agora que nos conhecemos, isso significa que somos aliados nessa fuga?
Aliados? Ela ergueu uma sobrancelha, o olhar desafiador. Não sei não, rapaz... Eu diria... cúmplices.
Sua risada foi curta, mas carregada de intenção.
Sabe... Começou, a voz baixa, quase engolida pela música.
Acho que você merece saber com quem está dançando.
Eu inclinei a cabeça, intrigado. Preciso me preocupar?
Ela soltou uma risada curta e debochada. Talvez sim... talvez não...
Ela parou de dançar por um instante, o sorriso desaparecendo de seu rosto. Seus olhos vagaram pelas pessoas ao nosso redor, como se estivesse buscando algo ou alguém. Então, voltou a me olhar, os dedos brincando distraidamente com a gola da minha camiseta.
De dia, sou Nia, uma programadora enfurnada em um escritório, cercada por telas lidando com códigos, metas e prazos. Mas a noite... é quando a coisa fica interessante!
Ela se inclinou mais perto, os lábios tão próximos do meu ouvido que eu podia sentir o calor de sua respiração.
De noite sou Ani, entro onde não deveria entrar, mexo no que não deveria mexer, e faço coisas que muitas pessoas não gostariam que eu fizesse.
Como o quê? Perguntei, minha voz saindo mais baixa do que eu pretendia.
Nia sorriu, mas era um sorriso discreto e sarcástico. Grupos, corporações, pessoas que enriquecem às custas de quem já não tem nada. Fundos obscuros usados pra financiar o ódio. E de toda a rede que faz parte disso. Eu entro nos sistemas deles, desmonto o que posso, exponho o que eles tentam esconder.
Meu peito apertou. Por um momento, não soube o que dizer.
Mas o que eu faço, faço por justiça. Não por poder, fama ou vaidade. É por vontade própria mesmo, e porque alguém precisa fazer.
E eu achando que salvar minha pele na praça era a coisa mais impressionante que você já tinha feito. Ela riu, mas era um riso mais leve dessa vez.
Não me dê tanto crédito assim.
Sem pensar muito nas palavras, perguntei:
Você não tem medo?
O tempo todo, respondeu Nia, mas aprendi a usá-lo como combustível.
Ela deu de ombros, mas os olhos não mentiam.
Medo é uma constante Moyo. Mas não se vive de verdade sem ele.
Faz sentido.
Mas por que você está me contando isso? Não é o tipo de coisa que se diz a um estranho.
Ela parou por um segundo, como se estivesse ponderando a resposta.
Porque agora somos cúmplices, se achou que eu ia me entregar fácil, perdeu playboy.
Dei uma engasgada mental, sentindo o peso do que ela havia compartilhado.
Entendo. E, por acaso, tenho muita experiência em manter segredos.
Ela inclinou a cabeça, um brilho de diversão iluminando seu rosto.
Ótimo. Vamos fazer um trato: você guarda o meu segredo, e eu guardo o seu.
Meu segredo? Perguntei, confuso.
Que você não sabe dançar.
Eu ri, relaxando pela primeira vez.
Combinado. Mas acho que você está exagerando. Meus passos não foram tão ruins assim.
Na verdade, a última vez que dancei foi num casamento de um primo distante, e acabei pisando no pé da noiva. Mas alguma coisa em Nia me fez esquecer de tudo isso. Talvez fosse o jeito que ela balançava os quadris ou aquele olhar enigmático que parecia confundir o mundo.
Não tinha como recuar agora. Estendi a mão, tentando parecer mais confiante do que realmente estava.
Nia arqueou uma sobrancelha, como se estivesse avaliando se eu valia a pena. Depois, com um sorriso que fez meu coração acelerar, ela pegou minha mão.
Consegue me acompanhar? ela disse, puxando-me próximo ao seu corpo.
Eu me vi tentando seguir os seus passos. Ela se movia com naturalidade. Eu, por outro lado, parecia um poste tentando dançar.
Meus pés pareciam ter vida própria, e eu tinha certeza de que, a qualquer momento, ia acabar caindo de cara no chão.
Relaxa, disse Nia, enquanto eu tentava imitar um movimento que ela tinha acabado de fazer.
Só segue o ritmo, balançando os quadris de um lado para o outro.
Eu tentei. Eu realmente tentei. Mas no meio de um giro, acabei pisando no pé dela.
Desculpa! senti o rosto queimar de vergonha.
Nia riu de novo, mas dessa vez, o olhar dela era mais gentil.
Você é pior do que eu pensava, ela gargalhou.
Depois de alguns minutos, de mais alguns tropeços, e também de mais cerveja eu comecei a me soltar um pouco. A música estava me envolvendo.
Eu não sei o que deu em mim, mas em um momento de coragem ou talvez de pura loucura, eu a puxei para perto, deixando nossos corpos se encostarem.
Ela parou por um instante, como se estivesse surpresa, mas não se afastou; pelo contrário, encostou-se mais em mim, como se quisesse que eu sentisse sua respiração.
Comecei a me mover no ritmo da música Faraó, Divindade do Egito, tentando acompanhar seus passos. Ela se aproximou mais, os lábios tão perto que eu podia sentir o hálito de cerveja com trident de hortelã, quase encostando o rosto no meu:
Que gracinha, tá melhorando.
Estou mesmo? perguntei, com um sorriso que tentava esconder o nervosismo.
Está, mas vê se não pisa no meu pé de novo.
Ela deslizou as mãos pelos meus braços, e eu sentia o corpo dela se encostar no meu.
Você está me distraindo, ela sussurrou, os lábios quase tocando meu ouvido.
É você que está me distraindo, eu respondi, com a voz carregada de uma vontade que eu não conseguia disfarçar.
Ela deslizou as mãos pelo meu peito, sentindo os batimentos acelerados do meu coração.
Você está nervoso? perguntou, com um sorriso malicioso.
Com você? Desde o começo, eu admiti, sem tentar disfarçar.
Ela riu de novo, mas desta vez, o som foi mais íntimo, como se estivéssemos compartilhando um segredo.
Bom, ela disse, aproximando-se mais.
Porque eu também estou.
E então, sem cerimônias, nossos lábios se encontraram, como se o tempo tivesse desacelerado apenas para nós. E tudo o que restou foi o calor do corpo dela, o sabor dos lábios dela.
Eu tinha acabado de conhecê-la. Uma desconhecida. Uma cyber criminosa. Uma tempestade.
Mas… e se eu quisesse ser levado pela chuva?
Meu coração martelava contra as minhas costelas. Eu deveria me afastar. Mas não o fiz. Pelo contrário, meus braços deslizaram por suas costas, puxando-a para mais perto, como se não pudéssemos estar perto o suficiente.
Se aquele momento era tudo o que tínhamos, então eu queria que ele fosse nosso e nada mais importava.
Quando nos afastamos, nossos olhares continuaram a se entrelaçar, e eu podia ver a força da natureza em seus olhos. Sentindo que aquela conexão não tinha fundo.
Por um momento, eu me permiti esquecer de tudo: da polícia, do medo, do siso, das dívidas e de mim por completo. E me permiti apenas sentir… será que isso me faz um idiota?
Ou será que o erro seria nunca ter vivido nada?
Eu já perdi noites demais fugindo. Talvez tenha chegado a hora de viver algumas noites novamente. Eu devia me preocupar. Com as câmeras. Com os passos duros dos policiais. Com tudo.
Mas naquela hora, sob a batida do samba, havia algo nela que me fazia sentir vivo de uma maneira que até então eu não sabia que era possível.
Com o quadril dela roçando no meu, o cheiro doce de cravo e suor vindo da sua pele, fazia o agora maior que o depois.
Me aproximei devagar, respeitando o tempo do nosso corpo. Ela riu baixo quando minha mão roçou a curva de suas costas.
Está dançando bem… Disse Nia, com a boca próxima demais do meu ouvido.
Eu só sigo quem sabe pra onde vai.
Ela me olhou de lado, como quem reconhece algo
ou alguém.
Cê sempre fala bonito assim ou é só comigo?
Só com quem me desconcerta, afirmei.
Ela sorriu. E dessa vez foi diferente. Como se deixasse cair uma camada de si.
O samba seguia, mas a expressão dela mudou. Um olhar que escaneou o bar como se esperasse algo. Ou alguém.
Moyo...
Virei o rosto pra Nia, confuso. Foi aí que vi.
Um clarão atravessou a janela. O reflexo da luz no copo vazio. O mundo pareceu andar mais devagar.
Você acredita em destino? Perguntou Nia com os olhos firmes.
Depende do dia. Hoje, sinceramente, tô mais pro puro acaso.
Minha avó dizia que ninguém caminha à toa. E que às vezes, quando a gente não vê, são os nossos mortos que tão empurrando a gente pro lugar certo.
Um calafrio percorreu minhas costas.
Parece bonito… e assustador.
É os dois. Ela dizia que tem coisa que a gente sente, mas não vê. Eu cresci ouvindo essas histórias.
Por um instante, o corpo dela parou de dançar. O braço pousou no meu ombro com mais peso. Os olhos desceram até a mão. Ela girava uma aliança fina no polegar, distraidamente.
Mas o mundo não respeitou minha avó.
Levaram ela. Como sempre fazem com a gente.
O silêncio entre nós se adensou. Nem a música preencheu.
E desde então, você tá tentando acertar as contas? Perguntei.
Não… Ela balançou a cabeça, e os cachos se moveram para um lado e para o outro. Eu só não posso deixar que eles contem a nossa história do jeito que quiserem.
Sem dizer mais nada, ela me puxou pela mão. Era firme, mas não dura.
Passamos por entre corpos que ainda dançavam, rindo, distraídos. Entramos por um corredor apertado, entre o banheiro e a sala de sinuca, onde a luz do bar já não alcançava.
A penumbra ali tinha outra temperatura.
Ela me encostou na parede com delicadeza. Os olhos nos meus. Os dedos nos meus ombros. E se aproximou, com um movimento pequeno.
Era um beijo de silêncio. De ausência preenchida. De corpo que fala antes da boca.
Suas mãos deslizavam pelas minhas costelas como quem procurava algo perdido. Deixei que meu corpo falasse por mim, sem pressa.
Quando senti o botão da minha bermuda ser desfeito, minhas mãos a puxaram para mais perto. Os corpos colaram. A respiração virou linguagem.
O som do samba parecia distante agora. Como se a cidade tivesse ficado do lado de fora da pele.
Até que…
O silêncio foi rasgado.
É a polícia! É a polícia! Alguém gritou. E o mundo voltou a correr.
Nia afastou-se de mim rapidamente, ajeitando a roupa com movimentos apressados.
O calor do momento ainda queimava em minha pele, meu coração batia tão forte que parecia querer escapar do meu peito.
Eles estão aqui! Disse Nia, com os olhos arregalados em busca de uma saída. Indiquei uma porta nos fundos, pouco visível na penumbra.
Vamos por aqui.
Ela respondeu com um aceno lento, olhando para a porta. Os gritos do lado de fora pareciam apertar o tempo em torno de nós. Juntos corremos para fora da sala.
A saída estreita do bar nos jogou em um beco úmido e mal iluminado do Fundinho.
As grossas gotas batiam contra nossos rostos, misturando-se ao suor. As pedras de paralelepípedo escorregadias sob nossos pés pareciam conspirar contra nossa fuga, mas corríamos.
Corríamos como se nossas vidas dependessem disso e dependiam.
A água escorria pelos meus olhos, mas não era suficiente para apagar a luz das sirenes. Eu podia ouvir as vozes gritadas dos policiais ao longe.
Por aqui! Puxei Nia para outra direção, um corredor ainda mais estreito entre dois prédios. O cheiro de lixo e umidade misturava-se com o da chuva, mas não tínhamos escolha. Era o único caminho.
O beco se estreitava à nossa frente, e o ar parecia tornar-se mais rarefeito a cada passo. Meu peito queimava, e eu me arrependia de cada cigarro que fumei nos últimos anos.
Meus músculos gritavam por descanso, mas a única coisa que me empurrava para frente era o medo. O medo deles. O medo do que fariam se nos pegassem.
Não medo da morte, exatamente. Mas do que vem antes dela. O medo de ser só mais um corpo encontrado em um beco qualquer. Uma manchete que ninguém vai ler direito, ou condenar de qualquer jeito. Se eu cair aqui, meu nome será só mais um na lista. Ninguém vai perguntar quem eu era, o que eu sonhava, o que e quem eu amava.
As vielas do Fundinho pareciam se fechar sobre nós. O som das botas era uma contagem regressiva, cada batida no chão um lembrete de que estávamos a um passo de sermos engolidos. Viramos à direita, um latido distante. À esquerda, um poste piscando como se denunciasse nossa presença.
Mão na cabeça, os dois! A voz de Pereira rasgou o vento como um chicote.
Viramos para trás, e lá estavam eles. Pereira, Benício e Silva, iluminados pelo clarão de um relâmpago que cortou o céu naquele exato momento.
Benício apontava a pistola para mim como quem oferece uma flor. Com um sorriso debochado, daquele que antecipa a crueldade.
Silva tremia. Os lábios cerrados, os olhos semicerrados.
Mas Pereira…
Pereira vinha caminhando com calma, como um rei voltando para o trono. Segurava a arma pela coronha, com descuido calculado.
E aqui estão nossos pombinhos — disse ele.
Vocês sabem o que mais gosto em noites como essa? Ele perguntou, jogando a bituca no chão e esmagando-a com a bota, como se esmagasse o crânio de alguém.
A chuva limpa tudo. A sujeira, a dor, o sangue...
Ele se aproximava, e com cada passo, o beco parecia encolher.
Se esconderam como ratos, né? Fugindo do esgoto. Mas olha aí: se correr, o bicho pega. Se ficar, a gente prende."
Benício soltou uma gargalhada, apontando a arma para Nia.
Olha só tenente, a Cleópatra achou que podia fugir pro Egito. Será se o Faraó vai se ajoelhar pra gente?
Silva olhou para Pereira, buscando um sinal como um cão que espera ordem. Quando o tenente acenou com o queixo, ele avançou.
Fui jogado contra a parede como se meu corpo fosse saco de farinha. As mãos de Silva me pressionavam pelas costas, enquanto Benício girava ao redor com aquele olhar de quem saboreia cada segundo. O tijolo áspero arranhava minha bochecha, e o cheiro de mofo e chuva se enfiava nas narinas.
Nia estava ao lado, encostada no muro com força. Silva passou os olhos pelo colar de búzios pendurado no pescoço dela. A expressão dele se contorceu, como se tivesse visto uma cobra.
Isso aí... Ele disse, com desprezo, isso aí é falta de Deus e de vergonha na cara.
Ela não respondeu. Só abaixou o rosto devagar.
Benício chegou mais perto, o sorriso fino feito navalha.
E aí, faraó, faz o quê da vida? Rosnou, deslizando os olhos pelo meu rosto até parar na minha camiseta encharcada.
Sou diarista, respondi, tentando manter a voz firme.
O que? É artista? Sabia! Ele deu três tapinhas no meu ombro. O Faraó tem cara de artista mesmo.
A lanterna dele varreu o beco e iluminou um grafite colorido do Grande Otelo pintado no muro descascado atrás de nós. Benício assobiou, admirando a pintura.
Bonito. Fez uma pausa, cuspindo de lado. Pena que não paga boleto e nem põe comida na mesa. Arte é luxo de gente que nunca teve filho pra sustentar.
Abre as pernas vagabundo. Agora! A voz de Silva saiu dura, mas com um trêmulo escondido na garganta.
Demorei a agir, e foi o bastante
Abre essas pernas porra! Ele gritou. Foi então que senti o soco. Não no rosto, mas na dignidade.
Silva subiu a alavanca do braço entre minhas pernas com tanta força que quase me derrubou. Meu corpo instintivamente se arqueou.
Soltei um grunhido, mordendo os dentes para não gritar.
Do outro lado, Nia mordia o lábio para não reagir enquanto Pereira passava as mãos pelas suas costas, à procura de “provas”.
Moleque, você tá bancando o desentendido né, disse Pereira.
Pereira se inclinou levemente, olhando nos meus olhos. Puxou um cigarro do bolso e o acendeu com uma lentidão calculada, como se estivesse em um bar.
Ele se aproximou, o cigarro entre os dedos. Tragou, e soltou a fumaça direto no meu rosto.
Sabe, eu podia simplificar isso aqui. Um tiro no joelho e você começa a abrir o bico. Mas eu sou daqueles que gosta de ouvir as pessoas.
Se fosse no passado, de quem pode mais e chora menos, ceis tudo já tinha entrado é na vala, disse ele, calmamente, entre uma tragada e outra.
Vamos começar do zero. E eu prometo: quanto mais rápido vocês falarem, menos vai doer.
Vem com a gente na verdade moleque, sem roda gigante. No português claro:
Cadê a droga?
Meu coração disparou, e senti o desespero subir pela garganta: "
Eu... eu não tenho droga, senhor.
O tapa veio seco. Ardeu. Preciso te lembrar quem eu sou? Depois outro tapa, mais forte.
Cadê a droga? Repetiu Pereira.
Eu... eu não sei senhor.
Quando eu perguntar... Outro tapa rápido, que ardeu o meu rosto: Tu tem que saber!
E insistiu: ONDE ESTÁ A DROGA?
Respirei fundo. O gosto metálico de sangue enchia minha boca.
Eu não uso drogas...
Pereira sorriu. A mão dele pousou na coronha da arma me encarando com desprezo, a frieza em seus olhos:
Vinte anos de corporação moleque... Conheço vagabundo é de longe!
E não vem com esse papinho de justiça social, que pra mim isso aí é tudo conversa de quem nunca pegou no batente. Mas hoje em dia, fala a verdade é crime né.
Meu pai morreu carregando saco de cimento, sem ver um salário mínimo decente. E agora querem me dizer que eu sou opressor? Vão catar coquinho!
Querem mudar o mundo? Então começa lavando a louça ou carpindo um lote. Porque acordar as quatro da manhã pra ir trabalhar ninguém quer.
Do jeito que as coisas estão hoje em dia tenente daqui a pouco vão proibir a gente de falar grosso, resmungou Benício. Aposto que esse ai óh, e apontou para mim, é desses que acredita que o Brasil é racista, né?
Tenente, com todo respeito… esse negócio de racismo aí é só teoria de professor doutrinador. Começa na universidade pública com dinheiro do nosso imposto, aí desce pra cultura, vira letra de rap, hit de funk, novela da Rede Globo, e quando a gente vê, qualquer coisa que a gente fala já vem um falando que é estrutural. Se achando a vítima do sistema, dizendo que é o sistema que oprime.
Sistema é o trabalhador que acorda cinco horas da manhã pra limpar o que vocês sujam no carnaval.
Cambada de vagabundos!
Bora Benicio! Não temos a noite toda, disse Pereira, acendendo outro cigarro. Ele parecia se alimentar do espetáculo, saboreando cada momento da nossa prisão.
Antes que eu pensasse em qualquer coisa, o metal frio das algemas mordeu meus pulsos. Nia tentou resistir quando Benício a empurrou para o camburão, e sorriu como quem já sabia o nosso destino.
Tá nervosa por quê princesa? Quem não deve não treme. Ou será que deve e tá com medo de perder o tapete vermelho da lacrolândia?
Você vai adorar o passeio. Melhor que qualquer bloquinho de carnaval.
Perdeu faraó! Debochou Silva, cuspindo as palavras, como se gritasse pra si mesmo mais do que pra mim.
Fui jogado pra dentro da viatura. A porta bateu como sentença. Lá dentro, o escuro parecia vivo. E respirava com a gente.
Eu sentia o tremor de Nia ao meu lado. O suor. O medo. A raiva.
Tudo se comprimia ali.
Só restava o som de nossas respirações. E o peso imenso de um destino escrito por mãos que queriam nos apagar.
A chuva começou a castigar as ruas de Uberlândia, enquanto martelava o teto da viatura. Quando saímos do perímetro urbano da cidade, tudo ao redor ficou mais escuro, como se a escuridão fosse nos engolir.
Meus pulsos doíam dentro das algemas, e cada sacolejo do carro fazia o metal apertar ainda mais minha pele.
Meu peito apertou. Eu queria falar algo, dizer que sentia muito, que faria de tudo para sairmos dessa. Mas as palavras morriam antes de saírem.
O vento começou a uivar lá fora, como se a mata estivesse dizendo algo. Silva arregalou os olhos, as mãos tremendo levemente enquanto segurava o rádio.
Vocês ouviram isso?
Pereira revirou os olhos, irritado.
Para de frescura guerreiro. Tá com medinho de entrar na chuva e se molhar?
Mas Silva continuava tenso. Ele virou a cabeça, encarando a escuridão pela janela entreaberta da viatura. O vento sacudia os galhos das árvores com violência, mas nenhum deles se movia na direção do carro.
O rádio emitiu um chiado, e o gemido veio de novo, mais alto desta vez.
Silva tremeu, mexendo no coldre da arma.
Eu não gosto disso, senhor!
Benício mexeu no banco, desconfortável.
Tá de sacanagem né? Isso aí é só vento porra.
Mas eu vi.
Vi o ombro de Silva enrijecer. Vi a piscada nervosa de Benício pelo retrovisor, como quem sente os relâmpagos cortarem o céu lá fora.
Dentro do camburão, o ar estava denso. Nia e eu trocamos um olhar, mas não era só de dor. Tinha raiva ali, acumulada nos ossos, uma memória que queimava por dentro.
Nossos pés se roçaram no escuro. Não estávamos sozinhos. A respiração dela encontrava a minha no mesmo compasso.
E foi nesse silêncio que eu soube. Ou talvez foi pura intuição.
Quando o clarão atravessou o vidro da viatura, iluminando o rosto dela por um segundo, eu entendi: aquela noite mudaria tudo!