Saí do rio Uberabinha cambaleando, o corpo trêmulo, os pulmões ardendo. A água escura desvendava segredos que minha mente não entendia. As gotas escorriam por mim, tentando me arrastar de volta. Mas ali, na margem, uma sombra se moveu. Antes que eu pudesse reagir, mãos quentes me agarraram, me arrancando do abraço gelado do rio.
O olhar dela aflito me segurou tanto quanto seus braços.
Você está tremendo... Ela apertou os lábios. Respira. Sente o chão debaixo dos pés.
Tentei responder, mas meus dentes batiam incontrolavelmente.
O rio quase te levou... mas algo te trouxe de volta.
A voz dela tinha firmeza. Seus olhos nunca deixaram os meus, e o brilho neles me trazia segurança.
—Vai ficar tudo bem. Sou Aroyê. Estou aqui para ajudar.
Sentei-me com sua ajuda, ainda tremendo, respirando fundo, tentando organizar o caos na minha cabeça.
Inspirei profundamente, reunindo coragem para começar a falar.
—Tudo começou quando fui picado por uma cobra. Aroyê arregalou os olhos.
—Uma cobra? — A voz veio baixa, mas intensa. Suas sobrancelhas se arquearam como se ela não duvidasse, mas tentasse entender o que aquilo realmente significava.
Mas não disse nada. Apenas inclinou o corpo levemente para frente, apoiando os cotovelos nos joelhos.
A cena veio à tona com uma nitidez amarga. O quarto parecia encolher ao redor de mim. O ventilador rodando lentamente, mas minha mente ansiosa não encontrava descanso.
Lá fora, o carnaval ainda acontecia. Os tambores, o riso dos bêbados ao longe, tudo contribuía para a sensação de que eu ainda estava preso naquela anarquia. Mas dentro de mim, um desconforto crescente. O som das batidas do meu coração abafava tudo. E então, veio o silêncio.
De olhos fechados, ouvi o som de um estalo seco, seguido de um ruído áspero, escamas roçando contra o lençol. A apreensão me imobilizou. Quando abri os olhos, vi a cobra, enorme, deslizando pela minha pele. Eu tentei me mover, mas estava congelado. Ela subiu pelo meu peito, seu corpo pesado pressionando meu tórax, como se o próprio ar se recusasse a entrar nos meus pulmões.
Seus olhos negros como a noite mais escura fixaram- se nos meus. Minha respiração falhou. Eu queria gritar, mas o pavor me engoliu antes que o som saísse.
De repente, a boca se abriu.
A cobra cravou os dentes na minha testa, e a dor explodiu como se um incêndio tivesse começado dentro de mim.
Meu corpo arqueou, os músculos travados no grito que saiu.
Acordei aos berros, suando frio, as mãos enterradas no colchão como se ainda tentassem me salvar da dor. Abri os olhos e o quarto girou, como se eu estivesse em um barco à deriva, flutuando em um mar de náusea e confusão. Respirei fundo. Nada de cobra apenas o ventilador girando cansado, o cheiro azedo de cerveja velha e meu coração batendo descompassado, como se tentasse fugir do peito.
Me arrastei para olhar lá fora, tonto como um bêbado no final de festa. Abri a janela, e a luz do fim de tarde me atravessou. Uberlândia se derramava diante de mim, tingindo o céu de laranja e violeta.
Era um momento suspenso no tempo, o céu, lentamente, ia se apagando, como uma chama que se recusa a ser extinta, prolongando sua presença apenas para gravar na memória de quem observava aquele último suspiro de luz, antes que a noite tomasse seu lugar.
O ar fresco, em vez de aliviar, só levantou o cheiro azedo grudado na minha pele. O gosto amargo na boca não ajudava era a lembrança de uma noite de excessos e arrependimentos.
Caminhei até o banheiro, os pés tocando o chão frio como se estivessem testando a realidade. Abri a torneira, e o som da água jorrando encheu o ambiente. A água quente escorreu pelo meu corpo e eu queria que todo o excesso da noite anterior escorresse com ela.
Fechei os olhos, e o perfume do sabonete fresco de lavanda se espalhou, invadindo minhas narinas, enquanto o vapor se acumulava ao meu redor.
O banheiro se transformou em um casulo, onde o tempo passava lentamente, e eu pude me esconder da realidade por mais alguns instantes. Mas o banho não duraria para sempre, e a água, por mais quente que fosse, não poderia apagar as marcas deixadas pelos últimos dias.
Saí do chuveiro, sentindo a pele ainda quente, o vapor se dissipando lentamente, levando consigo a sensação de segurança provisória.
Envolvi-me na toalha, o tecido áspero contra a pele úmida, trazia-me de volta ao presente. Olhei para o espelho, vendo meu reflexo borrado pelo vapor que ainda se grudava ao vidro. Lá estava eu, acordado, limpo e renovado.
Mas meu rosto estava inchado, minha boca parecia ter passado a noite mastigando pedras, e o dente do siso, ah, o maldito dente, pulsava como se estivesse vivo, uma criatura própria que resolvia me torturar de dentro para fora.
E falar? Bem, minha dicção era um espetáculo à parte, parecia que eu estava ensaiando para ser o próximo ventríloquo da cidade.
Enquanto esfregava a mão no rosto, tentando afastar o sono e a dor, me dei conta que ainda era terça de carnaval, feriado acabando, e eu acordei um pouco mais pobre como sempre. Segundo meus cálculos, preciso de mais ou menos umas duas vidas e meia para pagar o que devo.
Fui até o armário, movi-me automaticamente, como se estivesse seguindo um roteiro que já havia ensaiado muitas vezes antes.
Abri a gaveta e, sem pensar muito, peguei uma cueca, vestindo-a quase no mesmo instante. Enquanto deslizava a gaveta de volta para o lugar, aquela vontade de um café bateu em mim. Pareceu ser o que eu precisava para começar o dia melhor.
Na cozinha, só o tic-tac do relógio quebrava o silêncio. Liguei a luz e o armário empenado rangeu ao abrir. Lá estava ele: um pacote de café esquecido no fundo da prateleira e acabei me lembrando que hoje em dia esse café pode ser considerado um tesouro. O cheiro já me acalmou antes mesmo de abri-lo.
Coloquei a água para ferver, e o som da leiteira borbulhando preencheu a cozinha, misturado com o som distante das vozes e músicas que vinham de algum lugar lá fora.
O tempo parecia se esticar, como se cada segundo fosse alongar a uma eternidade. Para preencher o vazio da espera, peguei o meu celular, buscando alguma distração. Foi então que meus olhos viram um monstro. A mensagem do banco mostrando a fatura do cartão de crédito, tão alta quanto as responsabilidades que eu evitava enfrentar. Meu coração acelerou um pouco, já antecipando o que estava por vir.
Lá estava ela, a fatura e seus quatro dígitos. A data de vencimento já havia passado dias, e o número que piscava diante dos meus olhos era maior do que eu esperava.
Voltei minha atenção para o bule. Peguei a caneca e despejei a água fervente sobre o pó de café, observando o líquido escuro se formar.
Dei o primeiro gole. O café desceu pela minha garganta, aquecendo-me por dentro e, ao mesmo tempo, deixando um gosto amargo na boca, uma metáfora perfeita para o que eu sentia.
O calor se espalhou pelo meu corpo, aliviando, por um breve momento. Por um instante, quase acreditei que o peso do mundo havia diminuído.
Fui até a janela da sala, segurando a caneca quente entre as mãos, como se o calor pudesse manter minha sanidade intacta. O aroma do café preenchia o ar, criando uma bolha de conforto em meio à tempestade que se agitava dentro de mim.
Eu estava ali, com a caneca na mão, tentando me aquecer, tentando me convencer de alguma saída, enquanto o céu começava a ficar cada vez mais pontilhado de estrelas, que pareciam zombar de mim.
De repente, uma notificação no zap. A mensagem do Nandinho no grupo dos Braia me arrancou do gelo.
Salve família. Hoje à noite a nave mãe vai aterrissar na praça Clarimundo, diretamente no Bloco do Seu Chico. Bora mexer o doce!?
Perguntei a mim mesmo: e aí, vou ou não vou? Poxa, são só mais algumas horas de folia, e o ano inteiro pela frente de trabalho e correria, para chegar no final do dia e me arrepender de não ter ido dormir mais cedo.
Mas, quer saber? Se o dente do siso quer me torturar, que o faça enquanto eu estiver dançando. E se as dívidas vão me sufocar, pelo menos que façam isso depois de um bom samba. A vida já está difícil demais para eu negar a mim mesmo mais uma noite de folia.
Me levantei de uma vez, sentindo o peso do meu corpo como se estivesse carregando o mundo nas costas. Lá fora o barulho da rua já chegava a minha janela com mais força. O som de risadas e música alta, e aquele cheiro de churrasquinho entrava pela fresta da janela.
Fui até o armário, e decidi que, se era para esquecer de mim, que seja com estilo. Coloquei minha melhor fantasia, a de cara de pau. Com um último olhar para o espelho, confirmei a decisão nos meus olhos.
Reguei o tinhorão antes de sair. Uma folha morta se curvava no canto do vaso, vermelha e ressecada. No centro, brotava outra, verde, vibrante, quase rindo como o carnaval. Foi com essa imagem nos olhos que atravessei a porta, pronto pra deixar o passado pra trás.
Entrei no meu Corsa velho, uma verdadeira relíquia ambulante, símbolo de irresponsabilidade que só o tempo e a falta de dinheiro conseguem explicar. Dez anos de histórias e desafios acumulados, e lá estava ele, com os documentos atrasados, licenciamento vencido, e o motor ronronando como um gato velho e cansado.
Os pneus, tão carecas quanto minhas desculpas, me empurravam na estrada por pura camaradagem. Mas, como dizem, "se a polícia não parar, vida que segue." O verdadeiro teste de fé, no entanto, era a gasolina, teimosamente na reserva.
Se dava para chegar ao destino? Isso, só o destino poderia dizer.
Ajustei o espelho retrovisor, notando minhas mãos levemente trêmulas enquanto a adrenalina começava a se propagar pelo meu corpo.
O ar noturno, fresco e um tanto úmido, misturava-se ao cheiro de óleo velho que impregnava o interior do carro. Era um cheiro familiar, um misto de suor, graxa e quilômetros rodados.
Apertei o volante, sentindo o material desgastado sob meus dedos, e girei a chave na ignição. O motor tossiu, hesitou por um segundo, e então, como um velho amigo que já sabia o que esperar de mim, entrou em ação. Peguei a rua Paraná com a destreza de quem conhece cada buraco. Os faróis varreram a escuridão, revelando o caminho sinuoso e familiar.
O sinal ficou vermelho e, claro, o motoqueiro atrás de mim passou acelerando sem nem pensar em parar. Afinal, para alguns aventureiros dessa cidade, sinal vermelho é só uma 'luz ambiente', mas quem leva isso a sério?
Uberlândia é a cidade onde os motoristas têm suas próprias leis de trânsito. A sincronia dos semáforos é uma dança de boas-vindas ao caos.
E as setas? Ora, quem dá seta nessa cidade é exótico, uma espécie quase em extinção. Dirigir no meio da pista é normal por aqui.
O sinal abriu e o desfile começou. À minha frente, o figurante: carro da Localiza, pose de CEO, desfilando pela esquerda como se Uberlândia fosse Mônaco, mas era a HollyUdi da dublagem.
Ele se arrastava pela Rondon!
Eu sentia a irritação crescendo dentro de mim. O Corsa, coitado, parecia compartilhar do meu sentimento, vibrando com impaciência, como se quisesse dizer: "Anda logo meu chapa, que a gasolina tá acabando e a paciência também!"
Então, com um sorriso cínico, dei uma última buzinada, aquela que não resolve nada, mas pelo menos alivia a dor.
Eu estava descendo a avenida Rondon.
Segui sentido Fundinho. Para minha surpresa, encontrei uma vaga bem em frente ao antigo Ovelha Negra, na Avenida Nicomedes. Estacionei o Corsa com a sorte de quem acaba de ganhar na loteria.
De bico seco, desci do carro e segui em direção à esquina da praça Clarimundo Carneiro. Lá estava Maria Joaquina, uma mulher de cinquenta anos, pele negra retinta e cabelo crespo volumoso, ao lado de sua filha, uma jovem de vinte e poucos anos com olhos castanhos escuros e cachos soltos que balançavam com a brisa morna da noite. As duas estavam ocupadas atendendo uma fila crescente de foliões.
A barraca improvisada, com seus isopores lotados de bebidas e o guarda-sol lutando para não ser levado pelo vento, parecia um verdadeiro oásis em meio ao caos do carnaval.
Ao lado do isopor, um cachorro caramelo, fiapo de manga, brincava despreocupado, mastigando uma garrafa pet vazia, alheio à nossa badalação.
Na minha frente, uma jovem universitária, com cerca de vinte anos, cheerleader da UFU, aguardava com uma expressão que misturava tédio e desdém. As duas longnecks de Heineken pendiam de suas mãos como um prêmio que já deveria ter sido pagas há muito tempo.
Maria Joaquina, por outro lado, batalhava com a maquininha de cartão, pressionando os botões como se estivesse em uma disputa épica contra a tecnologia.
"A maquininha saiu do ar de novo", murmurou, a voz carregada de frustração.
A jovem cheerleader revirou os olhos, impaciente, como se o atraso fosse a maior desgraça da noite.
Foi então que a filha de Maria Joaquina, que estava reabastecendo um dos isopores, levantou a cabeça e disse: “Talvez seja a memória mãe.”
Maria Joaquina bufou, sem perder o ritmo, ainda determinada a vencer a máquina. “Memória... só se for a minha que já tá ficando fraca de tanto estresse!”
O comentário, jogado ao vento como uma piada interna, arrancou risadas rápidas de alguns foliões próximos, que também aguardavam sua vez. Enquanto isso, o cachorro continuava a rosnar levemente para a garrafa de plástico, como se ele mesmo achasse graça na situação.
Eu me preparava para pedir minha bebida quando um jogador de futebol com a camisa dez da seleção brasileira cortou à minha frente — d e cabelo degradê, platinado — o jogador ajustou os óculos de grau e começou a falar alto no celular, querendo que todos escutassem a sua conversa.
"Ah, então você não vem porque sua namorada virou santa irmão?", ele debochava, alto o suficiente para ser ouvido pelas pessoas ao seu redor.
“Não sei se você lembra, mas antes de te conhecer, ela não deixava passar nada pai. Quer tirar a prova parceiro, dá um grau nos directs do Instagram. Dos dois mil e oitocentos seguidores que ela tem, pelo menos uns setenta estão sempre lá, enchendo a bola dela no privado, curtindo todas as fotos que ela está sem você.”
Ah, e deixa eu te falar, ela não te conta, que não corta os marmotas, e mantém alguns ali óh, como eventual estepe caso vocês não deem certo. E depois ainda se pergunta por que eu te chamo de trouxa.
Ele baixou os óculos um pouco para medir de cima a baixo a filha de Maria Joaquina, como quem avalia carne no açougue.
Com resignação e indiferença, ela desviou o olhar e se voltou para mim. "E você?", perguntou, com uma voz que tentava manter um tom neutro.
"Um latão de cerveja e uma água", respondi, apontando para o latão que brilhava no gelo. Ela enfiou a mão no isopor, os dedos ágeis buscando a cerveja mais gelada que pudesse encontrar, enquanto eu a observava.
A jovem cheerleader, enfim, cedeu e puxou uma nota amassada de dentro da capa do celular, estendendo para Maria Joaquina.
"Vamos resolver isso do jeito antigo". Maria Joaquina sorriu, aliviada, pegando o dinheiro enquanto sua filha anotava a chave Pix na tampa do isopor para quem quisesse antecipar o pagamento.
Depois de finalmente pagar, a cheerleader saiu dali com um suspiro de alívio, caminhando rápido, como se o carnaval estivesse a poucos passos de distância e ela não quisesse perder um segundo da festa.
O rapaz, agora com o cartão na mão, o balançava como um maestro impaciente, como se estivesse regendo uma orquestra e todos ali fossem seus músicos e necessitassem da sua atenção. Apontando o cartão para o isopor, ele assoviou: "Quero seis!"
Maria Joaquina, com a paciência de quem já viu de tudo, começou a pegar as latas uma a uma, mantendo o rosto inexpressivo, mas os olhos carregados de uma experiência que poucos ali poderiam compreender.
Sua filha, por outro lado, tentava fazer a maquininha funcionar, mas o aparelho continuava teimando em não se conectar à internet.
O caramelo, o único ser genuinamente despreocupado, continuava mordendo a garrafa de plástico, emitindo pequenos rosnados de vez em quando, completamente alheio ao carnaval.
Depois de algumas tentativas, a transação foi finalmente concluída e o cartão aceitou a compra. Maria Joaquina entregou as bebidas com um sorriso cansado.
"Aqui está moço. Espero que o resto da noite seja mais tranquilo", disse, com a voz refletindo a sabedoria de alguém que já passou por muitas noites iguais a esta.
Paguei pela cerveja e pela água no crédito, e segui em direção ao Museu Municipal. O chão vibrava sob meus pés, enquanto o batuque da Escola de Samba Tabajara se fundia com o som da multidão.
Cada passo que eu dava era uma saga, deslizava entre corpos suados, esquivando-me de serpentinas que caíam como chuva de confetes, e de sorrisos que brilhavam mais que as luzes de néon.
O sentimento de euforia se espalhava pelo ar, e o carnaval era um portal para o inesperado.
Enviei uma mensagem para os "Braia": "Cadê vocês? Já estou com o danone na mão!" Antes que pudesse receber uma resposta, uma mão pousou no meu ombro.
"Moyo! Até que enfim cara!" Era Nandinho, com um sorriso largo e uma fantasia de pirata. "A galera tá no coreto. Vem, a bagunça só tá começando!"
Enquanto seguíamos, o céu acima de nós se enchia de dois drones pretos, movendo-se com movimento que desafiavam o vento. Eles dançavam no ar, e então, de repente, começaram a projetar imagens na fachada do Museu Municipal. Fotografias antigas de Uberlândia desfilavam como páginas de um álbum esquecido, revelando memórias e rostos do passado.
"Olha isso Moyo! Nossa cidade cara!", Nandinho exclamou, com a voz carregada de reverência.
As imagens projetadas pelos drones na fachada do Museu Municipal, formavam um mapa alaranjado com o link "uberlandart.com" em destaque.
Acima de nós, os drones projetavam imagens da festa da Congada em frente à Igreja Nossa Senhora do Rosário. As fitas coloridas dos chapéus ondulavam ao vento, enquanto os dançarinos, em suas fardas impecáveis, entoavam cânticos ancestrais.
Cada passo, firme e cadenciado, trazia à tona a fé e a resistência afro uberlandense, desde os tempos em que suas celebrações eram realizadas em segredo.
A multidão, que antes se deixava levar pelo samba e pela euforia do carnaval, foi lentamente envolvida pelas imagens. O ritmo da festa se diluía diante daquela lembrança viva.
Cada olhar se fixava na projeção, como se as fitas e os cânticos da Congada fossem mais autênticos que qualquer fantasia ao redor. E, naquele momento, senti- me parte de uma história maior, e com tudo o que aquele passado significava.
Era como se os sons e cores daqueles tempos reverberassem através das décadas, um chamado silencioso de atenção.
Uma mulher, com sua boina e olhar forte, parecia desafiar o tempo, sua imagem projetada se tornando uma guardiã de nossa história, a bravura estampada em cada traço de seu rosto. Ao lado dela, uma criança, o olhar fixo em algum ponto além do visível, capturando o futuro e o passado nos olhos de curiosidade e esperança.
O som de cordas dedilhadas por mãos experientes parecia vir de longe, como um sopro perdido no vento, mas era apenas a memória capturada na foto de um homem com um violão. Ele tocava com a alma, cada nota um toque de amor a uma cidade que mudava e resistia ao tempo.
Não pude deixar de perceber a ironia por trás de tudo aquilo. Ali estávamos nós, em pleno carnaval, uma festa de excessos e disfarces, assistindo a uma retrospectiva de uma cidade que também usava sua própria máscara.
Era como se as projeções estivessem dizendo: “Olhem para nós, vejam como éramos, como somos, e como sempre seremos.
Quem estava por trás dessas projeções? Me veio a pergunta. Festa do Congo em pleno carnaval? UberlandArt.com parecia mais uma provocação do que uma mera exibição.
Segui Nandinho em direção ao coreto, cada passo nos aproximando mais da batida do samba, que parecia nos puxar como uma maré. A praça Clarimundo Pereira estava cada vez mais lotada, o calor humano se misturando ao calor da noite.
O ambiente ficou mais denso, uma massa de corpos se aglomerando, um empurra-empurra que surgia de todos os lados. O som das risadas se misturava a gritos e sussurros tensos, enquanto nos aproximávamos do coreto, a multidão se dividiu em dois, como uma onda quebrando contra uma rocha.
Bem no centro, estava o cara, o jogador de futebol, o camisa dez da seleção brasileira, aquele mesmo na barraca da Maria Joaquina, no meio de uma discussão acalorada com outro sujeito, que parecia prestes a explodir.
O rosto do segundo cara estava vermelho, e seus punhos cerrados tremiam de raiva. Ele gritava algo que eu não conseguia entender, mas seu tom deixava claro que ele estava a um passo de partir para a agressão.
Ao redor deles, os amigos dos dois tentavam intervir, alguns empurrando para separar, outros incitando a briga, o caos crescendo a cada segundo.
O empurra-empurra aumentava, e eu senti o peso da multidão me empurrar para frente, como se eu fosse apenas mais um pedaço de madeira flutuando na correnteza.
Nandinho olhou para mim, seus olhos arregalados de preocupação. "Cara, isso aqui tá pra estourar.”
No centro do tumulto, o jogador gesticulando freneticamente com as mãos. "Foi só uma brincadeira pai, relaxa!", ele dizia, mas seu tom sarcástico só parecia inflamar mais a situação.
O outro cara não estava entendendo nada disso. "Brincadeira? Você acha que pode agarrar minha namorada e sair numa boa?
Eu podia sentir a expectativa da multidão ao redor, todos esperando para ver o que aconteceria a seguir.
Um dos amigos do jogador tentou puxá-lo para trás, mas ele se desvencilhou, avançando mais uma vez em direção ao outro cara. Você tá querendo arranjar briga com o cara errado parceiro!
O som da garrafa quebrando foi como um tiro. A multidão deu um salto para trás, e eu fui empurrado ainda para mais perto do coreto. O jogador segurava os cacos como se fosse uma adaga improvisada.
Olhei para Nandinho, tentando alcançá-lo, mas ele já estava sendo arrastado pela maré de gente em fuga. Sua silhueta se dissolvia no tumulto, e eu só conseguia gritar por dentro.
Foi então que a vi.
Ela estava no coreto. Iluminada.
O vestido dourado não parecia roupa, parecia aura. A luz do ambiente refletia nos fios do tecido como se ela tivesse sido tecida com poeira de sol.
Era como se o tempo tivesse parado só ali, onde ela pisava. Os olhos dela encontraram os meus — e por um segundo, juro, o barulho desapareceu.
Mas foi a serpente na coroa, repousando em espiral sobre os seus cachos volumosos que me atingiu primeiro. Era como a do meu sonho. Com a mesma curvatura.
Antes que eu pudesse entender o que estava acontecendo, ela saltou do coreto.
E bateu contra mim.
O impacto me jogou um passo para trás.
Por um segundo, não havia mais multidão, não havia gritos. Só o toque da pele dela na minha. Os olhos dela estavam tão próximos que eu vi meu próprio reflexo nas pupilas.
Minha mão, instintivamente, roçou seu braço. Sua pele era quente, como pedra ao sol.
Você... tentei dizer algo. Qualquer coisa. Mas a voz travou na garganta. E Uberlândia explodiu.
Sem aviso, as sirenes alarmaram do nada. O pânico se espalhou como pólvora na fogueira.
Braços nos empurravam, pernas tropeçavam, gente gritava sem saber pra onde. A polícia avançava como enxame, dispersando tudo que estivesse no caminho.
Ela me puxou pela mão. Mas foi o segundo a mais em que ela segurou que me marcou. Como se dissesse sem palavras que não havia outra opção.
Não pensamos duas vezes. Só corremos.
Como quem foge da morte, e sabe que... se parar, é tipo o bêbado e o equilibrista.
Um instante de descuido... e você vira nada.