A primeira coisa em que Renata pensou ao abrir os olhos no domingo foi em Bernardo. No perfume dele, na pele dele em contato com a dela, no olhar dele. Levantou-se exasperada. Não consigo acreditar no que está acontecendo…, pensou. Já conversaram sobre isso. Ele sabia de suas decisões e até do porquê delas. Então, por que insistia em levar a relação deles para esse lado?
Enquanto passava café assumiu para si mesma que ele não era o único responsável pelo que acontecera. Lembrou-se de tê-lo beijado, de pular nele e de tudo que tinha feito. Um calor tomou seu corpo e ela ficou furiosa.
Ele pode dizer que é imaturo e está errando e aprendendo. Você não tem esse direito, Renata. Você precisa ter o mínimo de senso.
Depois do café, se arrumou e saiu de casa. Pressentiu o risco de Bernardo procurá-la e achou que seria melhor não estar. Passeou pelas banquinhas do brique no parque mais tradicional e popular da cidade. Deu uma olhada no artesanato, nos discos de vinil, conversou com quem passeava por ali. Perto do meio-dia, já estava do outro lado do parque, perto do Pronto Socorro, indo almoçar em uma das lanchonetes mais famosas da capital. Era um lugar simples, sem nenhum luxo, porém lembrada com muito carinho pelos habitantes da cidade.
Renata procurava escolher comida saudável no dia a dia e isso não era dificuldade para ela. No sábado, porém, além da pipoca doce e salgada de Bernardo, havia jantado pizza. Foda-se, pensou, é domingo e eu tô tão puta da vida que mereço um filé com fritas e uma jarra de suco.
Enquanto cortava a carne no prato, ela refletia. Se pelo menos a Carol estivesse aqui…! Precisava desabafar, abrir o peito com ela… Mas ela só volta amanhã e eu não vou mandar mensagem ou ligar de jeito nenhum. Ela trabalha tanto e merece muito uns momentos românticos com o Marcelo. O amor deles é tão bonito… Não sinto inveja. Quero toda a felicidade do mundo para eles. Só que às vezes, olhando para os dois, me pergunto se desisti cedo demais do amor… E respondo a mim mesma que não, que eu tentei e que não é pra todo mundo este tipo de felicidade. Não tive sorte. Minha vez passou.
Ela pegou uma batatinha com a mão e mordeu, olhando distraída para os passantes na calçada. Se eu sei disso e se eu sei que o Bernardo não presta, por que estou sentindo isso latejando aqui dentro do meu peito? É medo. Só pode ser medo. Eu tinha todo o controle da situação e, de repente, parece que o barco da minha certeza naufragou e estou tentando não me afogar nesse mar de sensações. Preciso lembrar que eu sei nadar. Não posso esquecer.
Bernardo acordou com o nariz contra o travesseiro, sentindo o cheiro do xampu de Renata. Era doce e quente, um aroma fechado, ele não saberia descrever. Só sabia que o fazia lembrar da sensação de aspirá-lo direto do pescoço dela, da nuca, o que intensificava a vontade de tocá-la.
Virou-se de barriga para cima. Enquanto se distraía observando a luminária no teto, recordava de flashes da noite anterior. Tão bom… E ele tinha estragado tudo. E valera a pena? Não sabia dizer. Se aqueles momentos tão deliciosos significassem nunca mais conversar com Renata? Sentiu uma pontada no peito. Não queria isso.
Levantou-se. Tomou café, foi para o banho e logo estava batendo na porta do 701. Insistiu bastante. Inicialmente acreditava que ela o estava apenas ignorando. Depois desceu até a garagem e viu que o carro dela não estava lá. Se convenceu de que ela devia mesmo ter saído.
O celular tocou, era uma mensagem. Bernardo pegou o aparelho e leu:
“Bom dia, caro amigo. Mais um final de semana se passou e, aposto, você não comeu a Renata. Diz aí: tô errado? Ou pior: você comeu e se apaixonou. Sei que é o que vai acontecer. Comeu ou não?”
“Bom dia, Mateus. Não, eu não comi. Nem vi a Renata ontem, e hoje, que eu pretendia ir lá, ela não está. Mas espera, ainda temos quase um mês.”
Um canalha, um belo de um filho da puta, ele se xingou mentalmente. Quem tem razão? A Renata, que sabe que você não presta, que não tem jeito. Por que mentir para o Mateus? Ah, não, também. Eu não vou dizer a ele que estou todo enrolado aqui, que acabamos ficando amigos, que ontem aconteceu de um jeito muito estranho… Ele vai achar que estou apaixonado. E isso, é claro, não é verdade.
Buscando fugir dos questionamentos internos, Bernardo vestiu um abrigo e saiu para correr. Pegou a ciclovia em uma grande avenida próxima e foi até um dos parques da região, que ficava à beira do lago. Voltou quando sentia as pernas latejarem de cansaço.
Tomou outro banho e se jogou na cama. Não queria almoçar. Cobriu-se e dormiu.
Renata passou pela catraca e entrou no jornal. Já tinha enviado a matéria sobre mães-solo para a revisão, iria começar uma nova investigação. Quando chegou à sua mesa, encontrou ao lado do computador um enorme buquê de margaridas brancas. Sem reação, chegou perto das flores e percebeu que, na verdade, elas não haviam sido cortadas: estavam em um vaso coberto pelo celofane furta-cor que finalizava o arranjo.
De boca aberta, pegou o presente e, ao virá-lo, notou um pequeno cartão branco com uma bela letra de forma em caneta preta. Examinou o bilhete.
“Rê,
Não queria que você se afastasse de mim. Sei que errei, você me avisou tantas vezes! Mas não fiz por mal. Não resisti, mas farei de tudo para resistir de agora em diante.
Gosto muito de estar com você.
Você me perdoa? Podemos ser amigos?
Bê.”
Sentimentos controversos tomaram Renata. Ficou estática, de pé, com as flores em um braço e o cartão na outra mão, relendo as palavras. Carla se aproximou.
— Rê…! Em todos esses anos, nunca tinha visto você receber flores! — exclamou a colega. — Sempre tão durona, evitando se envolver… E achei interessante que este cara resolveu te mandar margaridas. Quando um homem quer uma mulher, ele manda rosas, não é? Ou estou por fora?
Renata suspirou. Colocou o cartão no meio do buquê e largou o vaso ao lado do computador.
— Você está certa, Carla. Um homem que quer uma mulher manda rosas. Não é o caso aqui. — explicou ela, sentando-se e ligando a máquina.
— Do que se trata, então? — perguntou a outra, sem disfarçar a curiosidade.
— É de um amigo. Tivemos algumas conversas, eu disse coisas a ele e ele quer agradecer os conselhos. — mentiu ela. — Ele é comprometido, não me mandaria rosas ou coisa assim.
Carla assentiu, duvidando.
— Sei. Ai, amiga, não enrola, é de alguém apaixonado por você? — insistiu ela.
Renata revirou os olhos.
— Com certeza, não. Aliás, se fosse, eu estaria fugindo dele, amiga. Não quero macho atrapalhando minha vida. O negócio é dar e cair fora.
A colega afastou-se devagar, deslizando sobre as rodinhas da cadeira.
— Nossa, Rê… Você devia dar uma chance a si mesma. Uma mulher linda dessas, jovem, resolver se fechar de vez para o mundo.
Suspirando, Renata encerrou o assunto.
— Quem disse que eu me fechei para o mundo? Eu encaro o mundo de pernas abertas, digo, de braços abertos. — brincou em tom irônico.
Carla riu.
— Você não tem jeito, amiga.
A outra fez que não, abrindo o navegador na tela do PC.
— Tenho não, miga. Já desisti de ter jeito. Bonitinhas as flores, vão enfeitar meu apê. Gostei.
Elas conversaram brevemente sobre plantas ornamentais e voltaram ao trabalho. Na cabeça de Renata ia e vinha a lembrança de que Carolina voltava à tarde de viagem. Achava que a angústia só passaria se pudesse se abrir com a amiga.
Leu a lista de temas sugeridos para a próxima matéria que escreveria. Alimentação saudável. Vou escrever sobre esse.
“Oi, amiga… Tudo bem? Espero que tenha sido ótima a viagem de vocês, como vocês merecem. Estou ansiosa para conversar com você, mas não quero te incomodar… Então queria te deixar descansar hoje. Poderíamos nos encontrar amanhã?” — ela escreveu a mensagem e enviou para Carolina.
Começou a pesquisar o assunto sobre o qual escreveria e em seguida ouviu o bipe do celular. Era a resposta da amiga.
“Oi, Rê, amiga, que saudade! Você não tem ideia do quanto foi bom…! O Marcelo é um príncipe, todo dia ele me dá mais motivos para ser louca por ele. Mas, enfim. Claro que quero encontrar você! Quer ir lá em casa na terça à noite? Faço uma comidinha caseira para gente.”
Sorrindo, Renata respondeu:
“Quero, sim. Sua comida é ótima. Acho que dá tempo de conversar com você antes do Diogo e da Isa voltarem da faculdade.”
“Claro que dá. As crianças demoram a chegar. Vem que tô louca para te ver! Beijos, miga, sua quenga”
“Até, amore, beijos!”
Carolina abraçou Renata e a conduziu para dentro de casa.
— Vamos logo que eu deixei a comida no fogo! — a dona da casa apressou a amiga.
— Posso saber o cardápio de hoje? — perguntou Renata, fechando a porta atrás de si enquanto a outra ia para a cozinha.
— Estou fazendo polenta recheada e carne de panela. Que tal?
A visita parou na porta do cômodo.
— Huuummmm! Que delícia! Aquela sua polenta bem cremosa, consistente, a carne desfiando, o molho bem grossinho? — ela quis saber.
Carolina assentiu.
— Exatamente. E com queijo e salada de rúcula.
— Ai, amiga, vou ficar uma bola assim, já não basta o Bernar…
— Como é que é? — Carolina interrompeu, parando de mexer na panela. — O que tem o Bernardo?
— Bem, amiga, é que acho que tem umas coisas que preciso te contar… — começou a outra.
Ela foi narrando para a amiga sobre a doença, os cuidados de Bernardo e, por fim, sobre a noite de sábado.
— Sua puta! Como é que você fica doente e nem me diz? Eu voltava pra cuidar de você! — ralhou Carolina, brava.
— Por isso mesmo, mamãe leoa. Porque eu sabia que você era bem capaz de estragar sua lua de mel e voltar só pra cuidar da amiga estropiada. No fim, ficou tudo bem. O Bernardo me deu uma força. Pena que depois metemos os pés pelas mãos… — lamentou Renata.
— Claro que você tomou a pílula do dia seguinte no domingo, né, Rê? — o tom de Carolina já era novamente preocupado.
Renata ouviu um zunido nos ouvidos e se encostou no balcão da cozinha.
— Puta que pariu, Renata, você não tomou??? — indagou Carolina, cerrando os dentes e franzindo o sobrolho como se estivesse prestes a testemunhar um desastre.
A outra cobriu o rosto com as mãos, depois as bateu do lado das pernas e suspirou fundo.
— Amiga, me entende, olha só… Na hora, só pensei que podia pegar alguma doença, o Bernardo é muito metido a garanhão, vou eu saber se ele se cuida? Mas ele me garantiu que sim, que se cuida. Depois, domingo e ontem, minha preocupação era que nosso relacionamento estava se tornando algo muito complicado, eu simplesmente esqueci desse detalhe! Esqueci que tirei o implante há pouco… puta que pariu.
Carolina fez que não com a cabeça.
— Tudo bem, amiga, vamos nos acalmar, vamos pensar. Você já passou dos 40, a chance de engravidar é muito menor. Pela sua cara não devia te perguntar se ele gozou dentro, né?
Renata lançou-lhe um olhar nervoso.
— Tá, não vou te condenar, amiga, quem sou eu? Não tive três filhos e todos sem querer? Mas não vai acontecer com você. Vamos pedir pela tele-entrega da farmácia?
A outra concordou com a cabeça.
— Tá, pega o telefone e pede pelo aplicativo. E vamos falar sobre o que você está sentindo. Fala.
Renata pegou o aparelho, baixou os olhos e ficou em silêncio por instantes enquanto digitava. Depois voltou a suspirar.
— Tô confusa, amiga. Porque eu sabia que gostava de dar para o Bernardo, ok, isso não é novidade. Mas é aquilo, achei que ele era muito insistente e preferi me afastar pra evitar envolvimento. Só que veio essa porcaria de dengue… e ele simplesmente nem parecia ele! Queria que você visse… Cuidou de mim o tempo todo, Carol, até nos momentos mais constrangedores, e de uma maneira que não me deixava desconfortável. Não sentia como se estivesse devendo algo a ele, parecia estar fazendo de coração, mesmo.
— Ai, Rê, é preocupante de verdade… — opinou Carolina, desligando o fogo e levando a panela para o balcão.
Ela pegou um refratário redondo no armário e começou a servir a polenta nele, entremeando com molho e queijo.
— E o auge da confusão foi acabar cedendo de novo. Não sei o que me dá, ele me faz esquecer meus combinados comigo mesma. E era tão fácil antes, eu decidia e me governava, não tinha esses escorregões. Eu acabo me odiando quando faço isso, quando descumpro o que combinei comigo mesma.
Carolina encarou a amiga com carinho.
— Miga, pra que ser tão dura contigo? O que tem de mais sentir algo?
A angústia estampou o rosto de Renata.
— Não, miga, não… Sério que é isso que você acha que tá acontecendo? Tô sentindo alguma coisa justo por um fedelho que, assumidamente, não quer nada com ninguém? Não, não pode ser… E eu achando que, a essa altura da minha vida, tinha me livrado de sofrer de novo!
A dona da casa se aproximou dela e a abraçou.
— Em primeiro lugar, Rê, você não pode garantir que vai sofrer, pra que o pessimismo? — indagou Carolina.
Duas lágrimas fugiram dos olhos de Renata, que apertou as pálpebras.
— Adiantou otimismo com o Thales, Carol? Ou com o Márcio? Só deu merda. — respondeu ela, amarga.
As duas se afastaram.
— Olha só, miga. Thales é Thales, Márcio é Márcio e Bernardo é Bernardo. Você não pode ter certeza de que vai sofrer.
Renata fazia que não com a cabeça.
— E ainda por cima ele mal tem vinte anos, Carol! De quantas cagadas ele vai precisar até aprender? E eu vou ser a cobaia dele? Não tenho saúde mental pra isso. — disse ela, indo até uma cadeira e sentando-se.
— Ok. Você está focada no fato de ser mais velha que ele. Mas veja bem: Tanto Thales quanto Márcio tinham sua idade e isso não impediu de dar merda nas duas ocasiões. É ou não é?
A outra revirou os olhos e bufou.
— Veja bem, Carol: Tanto Thales quanto Márcio tinham vinte e poucos anos. Igualzinho ao Bernardo! — argumentou ela.
Escutaram a buzina.
— Deve ser a pílula. — supôs Renata, indo atender o entregador.
Ela voltou com o embrulho de papel, já abrindo a embalagem. Enquanto Carolina falava, Renata pegou um copo, serviu água no filtro e tomou o medicamento.
— Ok, amiga, duas maneiras diferentes de entender a mesma situação. E eu compreendo totalmente seu receio, sua vida está tão tranquila, tão encaminhada… Parece que não falta nada, né?
— É amiga… Eu só quero paz. E isso é tudo o que eu não tive quando me envolvi com esse macharedo.
Carolina ergueu as sobrancelhas e entortou a boca.
— Sabe, Rê… Às vezes me impressiono com o quanto você ainda está machucada por trás dessa sua fachada de quem não precisa de ninguém. E vou te falar da minha experiência, que não é bem novidade pra você: lembra que você mesma me dizia para baixar a guarda? E foi só porque ouvi seus conselhos que hoje estou com o Marcelo. E olha aqui… — ela mostrou um anel solitário no dedo. — Ele me pediu em casamento, miga! Foi tão lindo!
Renata sorriu e pulou para abraçar Carolina.
— Carol, amore, eu não podia ficar mais feliz por você, sua linda! — elas se separaram e se entreolharam. — Mas você não tá querendo comparar o Marcelo, aquela pérola que você encontrou, com o safado do Bernardo, né? Desde o início o Marcelo foi o próprio príncipe com você. Bernardo nunca disfarçou que só queria me comer, aliás, a mim e a todas as mulheres que ele quisesse e que o quisessem.
Carolina riu, carinhosa, pegou o refratário e levou para a mesa da sala de jantar.
— Ai, amiga… Ok. Que bom que você tem tanta certeza e que não vai se arrepender de deixar passar algo que está mexendo tanto com você. Fico mais sossegada de saber que você não vai mudar de ideia.
Elas sentaram-se à mesa. Renata bebeu alguns goles de vinho tinto que Carolina tinha servido em sua taça. Por mais que tentasse avaliar o que dizia a amiga, lhe parecia que ia se arrepender muito mais de se entregar do que de deixar ir.