Outubro de 2008
O telefone tocou. Renata, meio dormindo, estendeu a mão para a mesinha de cabeceira. Pegou o aparelho e conferiu a tela: era o número de sua mãe.
— Mãe? — sua voz soou rouca de sono.
Do outro lado da linha, um soluço. Os olhos de Renata se abriram completamente, o coração pulou no peito e ela se sentou na cama.
— Renata…
— O que foi, mãe? — ela perguntou pressentindo com o corpo todo a resposta da qual o cérebro não queria tomar conhecimento.
Outro soluço.
— Seu pai… — sua mãe se interrompeu para chorar.
Renata, bem devagar, recostou-se na cabeceira da cama, fitando o vazio, e deixou a mão com o telefone escorregar lentamente do ouvido pelo peito até cair sobre o colo. Escutava a mãe chamar longe, era, no entanto, como se estivesse surda. Nenhuma lágrima caiu de seus olhos enquanto ela, estática, chocada, se mantinha imóvel. Só uma frase surgiu em sua mente: Meu pai morreu.
Daí em diante seus movimentos eram automáticos, inconscientes. Renata consultou o relógio do celular. Sua mãe já havia desligado. Eram 4h50 da manhã. Levantou-se e tomou um banho. Parou diante do guarda-roupa. Devia usar preto? Pelo menos não algo muito colorido, talvez. Que merda de diferença faz?, perguntou-se. A primeira forma da tristeza em seu corpo foi quando uma raiva imensa do mundo subiu de suas entranhas e ela berrou de ódio. Depois, em seguida, veio o choro. Sentou-se no chão e deixou-se chorar como uma criança. Definitivamente, a vida é uma merda.
Chorou até cansar. Sentia os olhos inchados e sensíveis, o rosto fervia. Preciso avisar o Márcio. Temos que ir para o interior agora. Também preciso avisar no jornal que faltarei hoje e talvez amanhã.
Pela janela do ônibus, Renata via passar a paisagem. Já estava amanhecendo. Olhou para a poltrona ao seu lado. Por ironia do destino, estava vazia.
“Hoje não posso, né, amorzinho, tem torneio. Você sabe que é importante, não posso faltar.”
Sem palavras, foi como ela ficou. Márcio, seu namorado há mais de um ano, simplesmente não podia ir ao velório do pai dela. E por quê? Porque ele tinha torneio! Uma merda de jogo de futebol entre amigos, algo que ele sempre faz e que pode fazer a qualquer momento, é mais importante do que eu! E não é porque eu tenho ciúme, porque quero que ele não saia do meu lado, nada disso. É por que eu perdi meu pai! Perdi uma das pessoas que mais amo no mundo, uma das pessoas mais importantes para mim… Perdi um pedaço de mim. E ele não pode sequer estar ao meu lado por causa de um… torneio?
Naqueles dois dias, Renata não saberia dizer se a ausência do namorado piorava as coisas ou se elas já eram tão ruins que não podiam piorar. Despediu-se do pai, tentou consolar a mãe, que chegou a passar mal na hora do sepultamento e quase desmaiou. Voltou para a quitinete onde morava sozinha.
Saiu do banho enxugando os cabelos, de roupão, quando soou a campainha. Foi até a porta e espiou pelo olho mágico.
Realmente, a cara de pau não tinha limites. Abriu a porta. Márcio estava de braços abertos e com a expressão mais penalizada e cândida possível no rosto.
— Amorzinho, vem aqui que vou te dar um abraço… — disse ele, dando um passo à frente.
Renata o impediu com a mão espalmada em seu peito.
— Você pretende me dar um abraço agora?
Márcio começou a procurar palavras.
— É que…
— Sabe, Márcio, se eu soubesse que você não podia ir ao enterro hoje, tinha pedido para meu pai morrer amanhã. Acho que se encaixaria melhor na sua agenda, né? — a voz de Renata era gélida.
— Meu amor, vamos conversar, não sabia que… — começou ele.
— Não sabia que meu pai era importante para mim? — Renata começou a chorar. — Não sabia que, se você me amasse como diz que ama, deveria se preocupar com meus sentimentos?
— Renata, me deixa entrar, não vamos discutir isso aqui na porta, né? — o tom dele era mais comedido e grave e ele olhou para os lados, conferindo se o corredor estava vazio.
— VOCÊ NÃO VAI ENTRAR, entendeu? — rugiu ela. — Como eu posso ter uma família com alguém que se importa tão pouco comigo? Como eu posso me deitar com você? Como eu posso olhar na sua cara, seu filho da puta? Márcio, vá embora imediatamente ou eu chamo a polícia pra te levar daqui!
O homem deu dois passos de costas.
— Eu não queria… — ele ainda tentou.
Renata saiu pisando duro na direção do celular que jazia sobre a mesa. O recente ex-namorado fez um sinal mostrando as palmas das mãos, se defendendo.
— Tudo bem, amor, se você prefere assim…
No momento em que Márcio tomou as escadas para ir embora, Renata andou pesadamente até a porta e a fechou.
Talvez isso só não seja para mim. Estar com alguém e, na verdade, estar sozinha: isso não me serve mais.
Maio de 2024
O dia tinha sido cansativo. Bernardo havia feito prova pela manhã na faculdade e à tarde o trabalho no estágio também foi bem puxado. Mesmo assim, não faltou à academia. Se sentia estranho depois de uma semana sem ir por estar cuidando de Renata. E ela, iria treinar?
Estava fazendo abdominais em um colchonete quando viu que Renata entrava e passava pela catraca, sorrindo para a recepcionista. Ela não o tinha visto e foi direto para a yoga.
Desta vez usava um conjunto vermelho de roupa colada e, ao vê-la de costas, Bernardo imediatamente lembrou-se das calcinhas ínfimas que ela usava. Tentou se concentrar em outra coisa, não queria ficar excitado ali.
Enquanto fazia musculação, ele não tirou os olhos de Renata até que acabasse a aula de yoga. Quando a vizinha saía da sala de vidro, avistou Bernardo. Sorriu e acenou, aproximando-se.
— E aí, fortão? — cumprimentou ela. — Custando a acostumar depois de matar o treino uma semana toda?
— Não é fácil desacostumar toda essa massa! — exibiu-se ele, batendo no bíceps e fazendo-a rir. — E eu tive um bom motivo para matar o treino.
Ela ergueu uma sobrancelha, com um sorriso.
— Qual foi o motivo? — indagou.
— Cuidar de uma teimosa que quer resolver tudo sozinha, até quando está se desmanchando toda. — brincou ele, retomando a série no aparelho.
“Cuidar”, atentou-se Renata, sorrindo mais.
— Só te dei trabalho, né? Desculpa atrapalhar sua rotina.
Bernardo devolveu o sorriso.
— Foi ótimo ter sua companhia, você é inteligente, interessante, sarcástica e direta até demais. Uma pena que estava doentinha, não gosto de te ver assim, mas ficar com você foi a melhor parte. — ele disse com sinceridade.
Um homem baixo e bem forte, parado ao lado do aparelho, pigarreou. Os dois se deram conta de estar ocupando o espaço. Bernardo se levantou e eles foram conversando enquanto ele continuava o treino, que terminou em dez minutos. Foram embora caminhando lado a lado.
— E, no fim, minha matéria, que eu estava quase terminando, ficou em suspenso essa semana toda. — disse Renata, antes de um gole da garrafinha d’água.
— Putz, te prejudicou? — indagou Bernardo.
— Acho que não. Só me atrasou um pouco.
— Hummm. E sobre o que é?
Renata olhou rapidamente para ele antes de responder.
— É sobre mães-solo. Minha melhor amiga criou os três filhos sozinha, até a entrevistei para a matéria. Esse tema não deve ter nenhum interesse para você, né? Assunto de mulher.
Ele fez que não.
— Não necessariamente. Não é porque uma coisa não é a minha realidade que eu não posso querer saber mais sobre ela.
Renata deu risada.
— Ai, Bê, você se esforça pra agradar, mas é difícil acreditar. Não precisa ficar representando para mim, somos amigos, você não está tentando me conquistar.
Ele sorriu, mas algo na frase o deixou inquieto. Tentou ignorar.
— E você nunca quis ser mãe? — perguntou ele.
— Quis, não quis, quis, não quis, e hoje, acho que não quero. — respondeu ela, pensativa.
— Acho peculiar você escolher esse tema para uma matéria sendo uma mulher sem filhos.
Ela voltou a sorrir, irônica.
— Os textos do jornal não são autobiográficos, Bê, caso ninguém tenha te contado.
Bernardo riu.
— Ok, ponto pra você. — brincou ele.
— E você?
— Eu o quê? — ele perguntou, distraído.
— Pensa em ter filhos?
Antes de responder, Bernardo mirou as estrelas.
— Não sei… Nunca pensei nisso. Acho que, talvez, isso não se encaixe na vida que levo. Do jeito que sou… Sei lá. Fui criado por pais casados e felizes. Eles têm suas diferenças, mas sempre houve respeito e eu recebi muito carinho, nunca me senti deixado de lado por nenhum dos dois. Não sei como se sente uma criança que cresce longe do pai ou da mãe… E eu teria capacidade de assumir a mãe? De acordo com você, eu não presto e isso é de fábrica, mesmo.
Os dois refletiram por instantes.
— Nossa, Bê, não esperava de você uma resposta tão madura. — Renata falou séria, depois brincou: — Tão maduro que nem parece você.
Os dois riram. Já estavam chegando ao prédio em que moravam.
— Obrigado por me chamar de crianção por tabela.
— De nada. Às ordens, sempre que precisar, tô aqui. — riu ela, batendo continência e piscando um olho.
Eles subiram juntos pelo elevador, se despediram e cada um foi para o seu apartamento.
Bernardo preparou um sanduíche natural e uma vitamina de frutas para o jantar. Enquanto cortava morangos, banana e mamão, lembrava dos lanches saudáveis que deixava para Renata quando ia para o estágio. Sorriu, distraído. Em seguida, ficou sério.
Estava distante do plano de ganhar a aposta com Mateus. Tinha se aproximado demais dela e isso era bem prejudicial, porque podiam acabar se envolvendo. E se Renata interpretasse mal as coisas? Se gostasse dele de verdade? “Eu sou assim porque conheci na minha vida homens como você.” Não queria ser mais um a magoá-la. A convivência com a vizinha tinha lhe mostrado o quanto, além de gostosa, ela era… um ser humano interessante. E, mais do que isso, havia revelado a Bernardo um lado dele que ele não conhecia, um lado que, na verdade, ele sequer sabia que existia. Nossa, isso é tão “adulto”, pensou, e em seguida lembrou-se de Mateus caçoando dele por estar começando a assumir responsabilidades com 22 anos. Mas é verdade. Renata ficava se rebelando, se negando a comer, com vergonha de passar mal, esquecia de tomar água. E ele sentia que precisava ajudá-la, apoiá-la, confortá-la. Como um amigo? Claro, como um amigo. Bernardo ligou o liquidificador. Amigo.
Renata saiu do banho e foi esquentar o macarrão à carbonara no microondas. Remexeu na geladeira atrás da salada de legumes com folhas verdes que Bernardo tinha deixado no dia anterior para ela. Sorriu lembrando.
Era quarta-feira e os dois já tinham jantado. Bernardo estava deitado ao lado dela na cama e decidiam o que iam assistir.
— Eu tinha começado Supernatural antes de adoecer. — ela lembrou. — Se você não se preocupar em pegar a história no meio, podíamos continuar de onde eu parei.
Bernardo não conseguiu disfarçar o ciúme.
— Sei por que você queria ver Supernatural. — resmungou ele.
Ela riu, debochada.
— Ué, por quê? — indagou, se fazendo de inocente.
— Por causa daquele projeto de Jeffrey Dean Morgan que você ficou lá na festa, oras. Aliás, depois de toda a nossa pegação lá no corredor, você simplesmente vai embora com ele! — Bernardo se queixou, ofendido.
Renata não conseguiu segurar a risada, mas, ao sacudir o corpo, sentiu dores e teve que se ajeitar melhor na cama.
— Ai, Bernardo, deixa de fazer drama! Vai dizer que você não foi embora com a ruivinha?
Ele bufou.
— Não foi? — ela continuou se dividindo entre rir e tentar ficar parada para conter a dor.
— Não. — Bernardo respondeu, tentando aparentar indiferença.
Renata tentava não rir.
— Juro que não entendi. Vocês estavam no maior agarramento, altos beijos.
Bernardo olhou sério para ela.
— Você sabe que aquilo era cena para você ficar enciumada. — confessou.
Desconcertada, Renata também parou de rir.
— Sério, Bê?
Ele fez que sim, fingindo grande interesse na tela da televisão, navegando no streaming.
— Viu só?
Bernardo virou-se para ela.
— O quê?
— É difícil de acreditar nisso, sabia? Aí não sei se você está mentindo para mim agora, ou se estava usando a menina lá no pub. De qualquer forma, me diz: que tipo de homem faria isso? — eles ficaram em um silêncio incômodo, que ela a seguir quebrou. — Já sei, vamos assistir a “The office”.
Bernardo aquiesceu. Em pouco tempo, os dois já estavam rindo, relaxados, esquecidos do diálogo incômodo.