Durante toda a aula, Bernardo esteve aéreo e, de tempos em tempos, consultava o celular. Nenhuma mensagem de Renata. Segurou a vontade de tomar a iniciativa e entrar em contato. Mateus estranhou o comportamento do amigo. Quando saíam para almoçar, decidiu confrontá-lo.
— E aí, cara, o que deu em você? Está tão distraído, em outro planeta. Aconteceu alguma coisa depois da festa? — perguntou.
Bernardo sacudiu a cabeça e bocejou. Tinha dormido mal, acordava ansioso, olhava o smartphone procurando uma mensagem de Renata. E se ela estivesse com febre? Com dor? Não seria melhor ir lá? Então se dava conta de que ela mesma o tinha, delicadamente, enxotado, lembrando que no dia seguinte ele teria aula.
— Nada. Passei o final de semana deitado, assistindo TV. levantava, fazia algo para comer, depois comia e deitava de novo. — não chegava a ser totalmente mentira, pensou.
Mateus fitou-o de lado, duvidando.
— Então, tá… Se você diz. Acho que você já deve estar se apaixonando pela Renata como eu apostei e é isso que você está escondendo! — sugeriu ele, causando uma sensação incômoda em Bernardo.
O amigo revirou os olhos.
— Que coisa mais nada a ver. De onde você tira essas ideias? — resmungou, fugindo do olhar do outro. — Isso é papinho seu pra fugir de vestir a calcinha da Jasmine.
— Por mim, tudo bem. Se eu perder, uso a calcinha e deu. Só acho que não é o caso… Você está estranho, Bernardo. Muito estranho. Te conheço há anos e nunca te vi assim. Primeiro que você nunca encanou de tal forma com mulher nenhuma. E depois que você está agindo esquisito, está distraído demais. Queria que você visse sua cara nesses momentos, você ia entender.
— “Primeiro” que eu não “encanei” com a Renata. Você que me desafiou, só estou atrás dela por causa disso. E depois que não tô esquisito, só ando cansado porque recém comecei este estágio e não tô acostumado a estudar e trabalhar.
— Você não me engana. Já vai escolhendo o modelo da calcinha.
— Vai tomar no seu cu, Teteu.
— Teteu…
— … “é meu pau” — arremedou Bernardo, com voz e careta de deboche.
Os dois seguiram se alfinetando e se empurrando na direção do Restaurante Universitário. Chegando lá, Bernardo despediu-se do amigo, dizendo que precisava passar em casa antes do estágio porque esquecera seu material de trabalho.
A noite de Renata foi um pouco mais inquieta do que a anterior. Acordou algumas vezes procurando por Bernardo, desconfiou que a febre tivesse voltado e tomou outro antitérmico.
Pela manhã, estava sem forças e enjoada. Não quis levantar para comer nem mesmo as frutas deixadas por Bernardo. Continuou deitada, ligou a televisão e assistiu por um tempo, pouco depois já estava sem paciência e deixou o aparelho falando sozinho, perdida em seus pensamentos.
O sonho de sábado para domingo lhe veio à memória. Fazia muitos anos que não sonhava com Thales. Embora uma parte substancial de sua vida fosse regida pelo curto período que vivera com ele, preferia esquecer sua existência — e quase sempre conseguia. A cena do sonho parecia continuação do que tinha ocorrido de verdade, mas nem isso havia acontecido. E Bernardo? Só estava no sonho por causa da febre e porque estava presente ali fisicamente, justificou para si mesma.
Caiu no sono e acordou várias vezes ao longo da manhã, até que despertou às 12h30 com batidas na porta. Arrastou-se até lá e abriu.
— Bernardo, você não tem estágio agora à tarde? — perguntou, voltando para a cama.
Ele fechou a porta e foi atrás dela, parando encostado ao batente.
— Tenho, sim. Mas precisava vir ver você, você não teve a capacidade de me mandar uma mensagem! Fiquei preocupado. — reclamou ele.
Renata se remexeu, se ajeitando na cama. Ainda sentia dores.
— Você não precisava se preocupar, não é sua obrigação.
Bernardo sentou-se na cama.
— “Não é minha obrigação”... Não é, mas eu me importo com você. Dormi mal pensando se você estava bem.
Ela o encarou, perplexa.
— Não é pra tanto, também, né. Eu não tô tão mal.
— Que bom. Mas lembre-se de que dengue pode se complicar, pode exigir internação. Espero que não precise! Além disso, mesmo que não piore, você tem que manter os sintomas controlados. E eu posso te ajudar.
— Tá bom, tá. — ela concordou.
— O que você comeu até agora? — indagou Bernardo.
Renata ficou em silêncio, olhando para ele.
— Poxa, Renata, nada? Caralho, assim não dá. Tinha fruta, tinha iogurte, deixei sopa de lentilha. Você vai ficar fraca. — ele repreendeu.
— Mas eu tô enjoada.
— Come só um pouquinho!
Ele, enfim, a convenceu. Assim que terminou de almoçar, porém, Renata correu para o banheiro e vomitou. Bernardo a seguiu e segurou seus cabelos enquanto ela se apoiava no assento do vaso sanitário.
— Tô com vergonha. — murmurou ela, ainda sentada no tapete do banheiro, evitando o olhar dele.
Bernardo arrumou os cabelos dela para trás.
— Tá com vergonha de ser humana, Rê? Todo mundo fica doente, todo mundo passa mal. Você não é um robô. Tá tudo bem. — consolou ele.
Renata ergueu o rosto para Bernardo.
— E você já tinha cuidado de alguém neste estado? Não, né? Você até p… — ela interrompeu-se para outra vez expulsar o conteúdo do estômago. — Puta que pariu! Você até pode ter passado mal, mas não costuma ver os outros pagando esse mico.
Ele abaixou-se para ficar no nível dela.
— Que “mico” coisa nenhuma. O que você quer fazer pra se sentir melhor? Lavar o rosto? Quer uma água?
Renata franziu o sobrolho.
— Quero tomar banho.
Ela fechou o vaso, puxou a descarga e já tirou o pijama para entrar no chuveiro.
Bernardo levantou-se e continuou ali, observando distraidamente. Não queria pensar nela desta forma, não naquele momento, mas seus olhos percorreram aquele corpo curvilíneo, mapeando os pontos que queria acariciar, que já tinha acariciado, e ficou excitado. Ela ia notar, pensou. Saiu dali e foi para o quarto. Não era um momento exatamente sexy, seu corpo, porém, não parecia estar se importando muito com isso. Renata apareceu na porta do banheiro enrolada na toalha e com a escova de dentes na mão.
— Bê, me alcança uma calcinha… — pediu ela. — Vou ficar com o mesmo pijama.
Ele foi até o guarda-roupa e procurou nas gavetas. Porra, a mulher não tem uma calcinha que não seja minúscula. Isso não colabora em nada! Pegou uma verde claro, tentou não prestar atenção nas pretas, brancas e vermelhas, que eram sua preferência. Queria apagar a imagem dela usando lingerie da cabeça. Alcançou para ela, que entrou novamente no banheiro, depois voltou de pijama.
— Agora não sei o que faço. Preciso ir para o estágio, mas estou preocupado com você sozinha. — disse ele, sentando e tentando disfarçar a ereção.
— Bê, é um absurdo você se atrasar por minha causa. Vou tomar um remédio pra enjoo. Assim que passar, eu juro que tento comer de novo, pode ser? Você fica mais descansado assim?
Ele assentiu.
— Se você jura… E, se piorar, promete que me manda uma mensagem? — pediu ele.
— Prometo. Agora vai lá.
Bernardo saiu meio de lado, torcendo para que ela não observasse que seu pau ainda não tinha se desanimado de todo. Quando chegou à porta do quarto, no entanto, ele voltou rapidamente, se abaixou e beijou o rosto de Renata, que levou a mão ao local onde os lábios dele haviam encostado.
— Te cuida. Tchau. — despediu-se ele.
— Tchau. — ela respondeu, um pouco surpresa.
Renata ouviu a porta se fechar. Ficou pensando… Foi impressão minha ou o Bernardo estava de pau duro?
Naquela noite, Bernardo não compareceu à academia. Voltou do estágio e foi para a casa de Renata. Durante a semana, a rotina se repetiu: ele passava lá depois da faculdade e no fim da tarde. Estava sempre incentivando-a a se alimentar e a tomar água, trazendo os medicamentos que faltavam e fazendo companhia.
Evitava vê-la sem roupa, porque era difícil disfarçar o desejo que ela lhe despertava e não queria ser insensível em um momento como aquele. Não comentou com Mateus que Renata estava doente e muito menos que era ele quem cuidava dela.
No domingo, ela já estava bem melhor. As dores, quase inexistentes, estavam bem suportáveis. O enjoo tinha ido embora, o que ainda permanecia um pouco era a dor de cabeça.
Bernardo havia dormido de sexta para sábado e de sábado para domingo outra vez lá. Mantinham o relacionamento platônico e ele fazia de tudo para não olhar para ela com olhos de homem.
Aproveitando que Renata já conseguia se alimentar normalmente, Bernardo fez para o almoço o macarrão à carbonara que pretendia fazer na semana anterior. Já não tinha em mente tão firme a ideia de seduzi-la, estava imerso na sensação gostosa de sua companhia. Renata ajudou na cozinha e eles prepararam a massa rindo e conversando.
— Você é um idiota, Bernardo! — Renata xingava, dando risada. — O que passa pela sua cabeça de namorar com duas garotas ao mesmo tempo?
Ela terminou de lavar a salada. Bernardo deu uma gargalhada e fez que não com a cabeça.
— Juro que tentei! Primeiro eu tive minha primeira namoradinha, com uns quinze anos. Em seis meses já me interessei pela amiga dela, mas quando cheguei na garota, ela me disse não e contou tudo para minha namorada, que me deu um chute, claro. Ali com dezesseis tentei de novo, mas desta vez fui a uma festa e uma gata deu em cima de mim… Minha segunda namorada ficou sabendo e foi outra bicuda que tomei. E com dezessete achava que estava apaixonado pela Gabriela, aí conheci a Vanessa…
— Desde que botei meus olhos em você, sabia que você não prestava. — Renata brincou.
O sorriso de Bernardo era um pouco enigmático.
— Você também é da liberdade, Rê, não vem falar de mim. Mas, me diz… Você me disse que não foi sempre assim. Será que, depois de uma semana mostrando que sou seu amigo, posso saber o que te fez mudar?
Ela ergueu as sobrancelhas e suspirou servindo o macarrão em uma travessa. Bernardo começou a despejar o molho sobre ele.
— Sou assim pelo motivo contrário a você, Bê. — respondeu ela, séria. — Você é assim porque você não presta, é da sua natureza, você não consegue ser de outro jeito. E acho que você é feliz assim, por que mudar? Eu sou assim porque conheci na minha vida homens como você. Suas histórias são engraçadas, mas acho que você não reflete sobre o quanto magoou as garotas que foram suas namoradas. É um tipo de egoísmo, sabia? No fundo, você só pensa em você e no seu pau.
Bernardo ficou mudo. Na verdade, já havia pensado, sim. Em noites de insônia, ficava se perguntando por que era daquele jeito e se não podia ser diferente… Chegava à conclusão que era fraco. Encarava com bom-humor suas experiências como forma de fugir do que sentia. Renata estava errada?
— É, Rê… vendo pelo seu lado, eu lamento… — desculpou-se ele. — Lamento que caras idiotas como eu tenham te feito sofrer. E me pergunto se eu não gerei “renatas” por aí, descrentes do amor e solitárias por opção.
Ela exibiu um sorriso triste.
— Os caras que me fizeram sofrer eram bem mais idiotas que você, ou, pelo menos, acho que você não é tão idiota quanto eles. E, se você gerou “renatas”, elas são, sim, descrentes do amor. Mas não solitárias por opção. Tenho amizades comuns e amizades coloridas, tenho sexo casual. Não fico sozinha.
Bernardo assentiu lentamente, levando a travessa para a mesa, sendo seguido por Renata, que levava os pratos e talheres.
— Nisso sou como você e você não precisa mentir pra mim que não se sente só. Quem vive como nós, entre uma alegria e outra, sente aquele vazio, aquele vácuo… Acho que por causa dessa solidão.
Os dois trocaram um olhar quase assustado. Renata fugiu primeiro e começou a arrumar a louça na mesa.
— Talvez. — respondeu, lacônica. — Mas acho que não. Mudando de assunto, como vai seu braço robótico?
Os dois se ajeitaram para almoçar e Bernardo pegou o celular para mostrar um vídeo a Renata.
— Olha só como está ficando! Quero que ele seja capaz de abrir essa latinha.
Renata sorriu.
— Um robô abrindo lata de cerveja é a sua cara! — riu ela.
Eles comeram entre risos.
— Vou fazer um pra abrir sutiãs! — brincou ele.
— Filho da puta…! — ela xingou, rindo.
Bernardo foi ficando sério, quase encantado, admirando o rosto dela.
— Você tem um sorriso tão bonito, Rê! Gosto de te ver rir, de rir com você, mesmo você me esculhambando. — confessou ele.
Renata ficou encabulada e fechou o semblante, prestando atenção no prato.
— Ahn… Obrigada? — ela ergueu os olhos para ele. — Seu sorriso também é lindo.
O silêncio durou um minuto que pareceu um ano.
— O macarrão está muito bom! — desconversou Renata. — Não estou gostando desta sua amizade. Vou acabar engordando. Você acha que eu treino pesado igual a você? Não, né, eu só mantenho a musculatura e o alongamento para não cair tudo nem travar.
Bernardo fez que não.
— Falta bastante para você ficar gorda ou caída, né? Não falei que você é gostosa porque queria transar com você, falei porque você é muito gostosa. E você pode comer lá em casa sempre que quiser, faço muita comida saudável também.
Os dois continuaram comendo.
— Quero te agradecer por todo o cuidado que você teve comigo esta semana, Bê. Sei que você deixou de ir à academia e almoçou correndo para poder dar um pulo em casa e me ver. “Obrigada, amigo, você é um amigo”. — Renata finalizou com uma brincadeira e Bernardo riu.
— Só fiz isso porque estava sinceramente preocupado com você. Pode contar comigo, você tem o meu número. — ele frisou, sorrindo.
— Bom, pelo menos fiz você assistir a “O silêncio dos inocentes”, “Hannibal” e “Dragão Vermelho”. — vangloriou-se ela.
— E eu fiz você assistir a “Robocop 2” e “Robocop 3”. — devolveu Bernardo, dando de ombros.
— Você se aproveitou que eu estava sem poder fugir e me obrigou a ver esses filmes com você! — Renata brincou.
— Você utilizou sua doença para me obrigar a ver os seus! — ele respondeu no mesmo tom.
Ela abriu a boca, se fazendo de ofendida.
— Pobrezinha de mim, estava mal, sem a menor condição de obrigar você a nada. Você usou sua posição.
— Isso, exatamente, você usou de chantagem emocional, fazendo essa vozinha manhosa e olhos de Gato de Botas pra cima de mim. Quem resistiria?
Os dois voltaram a dar risada.
Depois do almoço, Bernardo despediu-se a custo de Renata, recomendando que ela se cuidasse, controlasse a febre e tomasse água. Ela agradeceu a preocupação e puxou-o para um abraço na porta. Ele a apertou bastante junto ao seu corpo e, antes de sair, deu outro beijo em sua face.
Antes de dormir, Renata ficou um tempo mirando o teto e pensando. Depois de todos aqueles maus momentos nos quais pôde contar com Bernardo, percebeu que gostava da companhia dele. Além da intimidade, na qual sabia que os dois se davam muito bem, relembrou suas tiradas irônicas, o humor palhaço às vezes; outras, o conforto de uma companhia silenciosa e a constante sensação de proteção. Gostava dele. Como amigo, pensou. No fim das contas, o Bê é um cara legal como amigo. O lado canalha dele é só com as mulheres com quem ele se relaciona e isso já passou para nós. Era nisso que queria acreditar.