— Viu só? — disse Bernardo, abrindo a porta para Renata, abatida, entrar em seu próprio apartamento. — Dengue. Não é contagiosa, não de pessoa para pessoa, pelo menos. Precisa de um mosquito. E eu posso cuidar de você.
Ela entrou no quarto e foi seguida por ele. Tirou o casaco, a blusa, a calça jeans e ficou apenas de calcinha e sutiã diante de Bernardo, que ficou surpreso e sem reação. Em seguida, pegou um pijama de inverno, outra calcinha e foi para o banheiro. Bernardo escutou o barulho do chuveiro. Depois Renata voltou vestida e enfiou-se sob o edredom.
— Você está com fome?
Renata fez que não.
— Mas precisa comer. Você ouviu o médico. Comer, tomar bastante água e, se preciso, esses remedinhos aqui. — ele apontou os analgésicos sobre a mesinha de cabeceira.
Bernardo ligou a televisão, foi à cozinha e voltou com uma garrafa d’água e um copo, que deixou junto aos comprimidos.
— Vou fazer algo pra você. O que você quer? Uma canja? Um creme de moranga, de aipim?
Renata sorriu enternecida diante da preocupação dele.
— Estou sendo estúpida com você, né, Bê? Desculpa. Você está sendo um amor, um ótimo vizinho, um amigo mesmo. O que você fizer está bom, eu nem tenho fome ainda. Obrigada pelo cuidado. Ai. — ela gemeu, se ajeitando na cama. — As juntas ainda doem. Nossa, parece que tomei uma surra.
Sentando-se na cama, Bernardo pôs a mão sobre a dela.
— Então vou fazer o jantar e te trago. Beba água, tá? Se você se sentir mal e precisar de mim, me chama, só me ligar. Deixa eu anotar meu número no seu telefone. Meu número certo, ok? — ele riu. — Vou estar em casa o dia todo. Quer alguma coisa, uma fruta?
Ela agradeceu, mas negou. Bernardo voltou ao seu apartamento. Era meio da tarde. Ele sentia uma sensação estranha… Nada havia acontecido nem de longe como o planejado. Pretendia encontrar Renata, sim, mas estava preparado para um jogo no qual usaria a amizade para chegar à cama dela. Não esperava surpreendê-la frágil, vulnerável, tão diferente daquela mulher segura, de nariz em pé, independente.
Ficou surpreso quando se deu conta de que, de imediato, seu impulso diante dela foi cuidar. Bernardo refletia sobre o assunto, apoiado no parapeito da sacada, olhando ao longe. Isso era completamente inédito para ele. Sempre tinha sido cuidado. Era filho único, queridinho dos avós, dos pais. Depois que saíra de casa, só cuidara de si mesmo. Suas tentativas de namoro aconteceram antes dos dezoito anos. Desde que havia se tornado adulto, não tivera relacionamentos que exigiriam, provavelmente, momentos como aquele, ou, pelo menos, ele imaginava que sim.
Estava, de fato, preocupado com Renata. Saíra do apartamento dela com vontade de ficar lá, um pouco agoniado pensando em como ela estaria enquanto ele estivesse fora. Certamente, o que estava sentindo pendia muito mais ao que viveram quando ela havia almoçado ali, quando assistiram ao filme juntos, do que aos momentos quentes que haviam dividido. Era um sentimento de empatia… de carinho. Tentou não pensar nisso.
Suspirou e foi para a cozinha, procurar os ingredientes para preparar uma canja para Renata.
Renata estendeu a bandeja com o prato vazio para Bernardo. Ele pegou o objeto e levou-o para a cozinha, depois voltou para o quarto.
— Como você está? — perguntou ele.
Ela suspirou.
— Bem, ou pelo menos, melhor. O remédio está fazendo efeito ainda, a dor diminuiu um pouco e não estou com frio.
— Quer que eu fique com você? Não consigo ficar tranquilo, fico lembrando de você aqui, sozinha, sério mesmo.
A jornalista encarou o rapaz. Parecia sincero.
— Podemos assistir a “O silêncio dos inocentes”. — sugeriu ela, dando de ombros.
Bernardo sorriu, amistoso.
— Em vez de pipoca, canja, mas tudo bem.
Eles riram.
O vizinho foi até seu apartamento, buscou a escova de dentes e roupa para dormir. Cinco minutos depois estava de volta.
— Bernardo, você não comeu nada. Quer pedir um lanche, fazer um sanduíche? Acho que pelo menos uns frios e pão eu tenho aí. — disse Renata.
— É mesmo. — concordou ele. — Vou te dizer que, na verdade, esqueci de comer, pensando se você estava se alimentando direito. Ao meio-dia comi uma cumbuca de creme de ervilha, mas agora à noite não comi nada.
Renata fez menção de levantar.
— Deixa que eu faço um sanduíche para você.
Bernardo conteve seu gesto, fazendo-a sentar-se outra vez.
— De jeito nenhum. Eu faço, se você não se importar que eu mexa na sua geladeira e nos seus armários.
Ela riu.
— Você já mexeu em coisas mais pessoais que minha geladeira, Bê. — brincou ela.
Ele devolveu o sorriso brincalhão.
— Mas isso não me dá o direito de mexer nas suas coisas quando eu quiser, lembra? Aprendi com você. Vou lá na cozinha e já volto.
Os dois se ajeitaram na cama para assistir ao filme. Perto do final, Bernardo olhou para o lado e viu que Renata dormia tranquila, sem suor ou agitação. Hesitou com a mão no ar, depois cedeu e acariciou a face dela, que se remexeu, sem acordar. Ele aproximou-se e beijou-a na testa. Assim que o filme terminou, desligou a televisão e virou-se para ela, observando atentamente se ela parecia bem: o ritmo da respiração, a expressão calma do rosto. Então entrelaçou seus dedos nos dela e conseguiu, finalmente, relaxar e dormir.
Renata foi ao banheiro e percebeu um pequeno sangramento na calcinha. Ainda sentia uma cólica, nada muito forte, mas estava desconfortável. Tomou um banho, escolheu uma camiseta e um short e voltou para a cama.
Carina apareceu na porta com uma xícara.
— Rê, fiz um chazinho de hortelã. Acho que um chá morno pode melhorar sua dor.
A outra fez que não.
— Obrigada, Caia, mas acho que nada vai passar pela minha garganta.
A amiga andou até a cama e sentou-se.
— Tem certeza, Rê? Só um pouquinho, vai te fazer bem.
Ouviram batidas na porta. Carina levantou-se para atender. Em seguida voltou.
— Miga, é o Bernardo.
Renata franziu o cenho, apertou os lábios e tentou não chorar.
— Manda ele embora, Caia, não temos mais nada para conversar.
Bernardo apareceu atrás de Carina, na porta.
— Rê… — chamou ele, parecendo preocupado.
— Agora você aparece? AGORA, Bernardo? — questionou Renata, com a voz embargada, sentando-se com dificuldade. — Agora eu não tenho mais nada pra falar com você, não quero ver você, agora acabou, não tem volta, você entendeu? Quando você devia estar aqui, não estava. Você nunca vai poder corrigir o que você fez, nunca vai poder preencher este vazio. Nunca!
Bernardo tentou dar um passo à frente, mas Carina o impediu com uma mão no ombro.
— Acontece que eu não sou assim, Renata, eu só me assustei, sou muito novo, somos, na verdade… — ele, nervoso, tentou se explicar.
— Sabe a diferença entre nós? É que você teve o direito de se assustar, Thales.
— Mas eu te peço desculpas…
— Desculpas não podem desfazer o que aconteceu. — a voz de Renata era dura.
Ela sentiu dor, de repente, porém, a dor não era mais no abdômen, a dor era nos braços, nas pernas, nas articulações exatamente. A cabeça também doía. E sentia frio. Passou a mão na testa: estava úmida. Olhou para Thales diante de si, aquela cara de vítima dele não causava nela nenhuma piedade.
— Vai embora, Thales! Vai, sai daqui que não quero nunca mais ver você!
— Renata!... Renata! — a voz não vinha de Thales, vinha de muito longe, como de um túnel.
— Vai! Já falei! — ela repetiu, com voz arrastada.
— Rê… Rê! — ela reconheceu a voz de Bernardo.
Abriu os olhos, confusa, com frio, tremendo, suando. Thales e Bernardo ainda eram uma só pessoa, até que ela firmou bem a vista e enxergou Bernardo, em sua roupa de dormir, sentado ao seu lado na cama.
— Tá tudo bem, Rê? Você parecia bastante perturbada enquanto dormia, acho que estava delirando, mandando alguém embora, mas não dava pra entender nada do que você falava.
Ela sentou-se também. Respirou fundo, tentando acalmar a respiração.
— Foi só um pesadelo. Deve ser por causa da febre. — ela tentou se justificar.
Bernardo esticou-se por cima dela para pegar o termômetro na mesinha de cabeceira.
— Vem, gatinha, vamos ver se você está com febre de novo.
Renata olhou para ele atravessado.
— “Gatinha”...
O vizinho ajudou-a a posicionar o termômetro.
— Tá, tudo bem, “Renata”, melhorou?
Os dois ficaram em silêncio até o bipe. Renata automaticamente entregou o medidor de temperatura para Bernardo.
— É… 38,5⁰C não é tão alta, mas ainda é febre. Vamos tomar mais um antitérmico?
A dona da casa concordou com a cabeça. Bernardo levantou-se, serviu a água e alcançou para ela, que pegou o comprimido e tomou. Ele a observou beber com um olhar carinhoso.
— Está com fome? — perguntou ele.
Renata fez que não.
— Sei que preciso comer, mas continuo com um pouco de náusea.
— Uma vitamina? Ou mesmo um suco de fruta, ao menos? — sugeriu ele.
Ela fez uma careta.
— Renata… — ele repreendeu.
Depois de revirar os olhos ela aquiesceu.
— Tá, ok. Deve ter umas laranjas na gaveta da geladeira. O espremedor fica embaixo da pia. Mas não é muito trabalho? Deve ter uma caixinha de suco no armário.
— É mais saudável feito na hora. — teimou Bernardo, indo para a cozinha.
Naquele domingo, ele ainda fez o almoço — uma sopa de lentilha — e os dois assistiram juntos a “Robocop 2” à tarde. Quando chegou a noite, Renata insistiu que ele fosse para casa, pois tinha faculdade na segunda pela manhã.
“Oi, Carla, tudo bem? Comigo, na verdade, não está muito, não. Estou mal desde ontem de manhã e descobri que estou com dengue.” — Renata enviou uma mensagem para a colega de trabalho. — “Acho que, nem que eu quisesse, poderia ir amanhã. Vou mandar mensagem pra chefe avisando, mas tenho o atestado aqui, se pedirem antes da minha volta, você viria buscar? Estou sem condições de ir. Posso mandar digitalizado se aceitarem”.
Carla estava off-line. Renata deixou o celular na mesinha de cabeceira e se deitou de lado, com uma vaga sensação de que faltava algo. Virou para trás e olhou para o outro travesseiro, vazio. Até há pouco, o volume do corpo de Bernardo preenchia todo aquele espaço — e ele era bastante espaçoso. Não estavam de namoro, grudados, de conchinha, nada disso. Ele estava sendo um amigo perfeito e em momento algum havia ultrapassado o limite que ela tinha estabelecido. Sorriu lembrando. Aqueles dois dias foram tão esquisitos! Renata não estava habituada a ser cuidada há muito tempo, na verdade, há anos tinha internalizado que só podia contar consigo mesma. E, de fato, mesmo nos períodos em que estivera doente, sempre tinha se virado. Não confessara a Bernardo, porém evitava contar até mesmo a Carolina quando estava de cama. Não queria incomodar a amiga.
E o que mais a surpreendia era que ele não parecia estar fingindo um interesse falso. Parecia se importar com ela de verdade. Que tipo de relação era aquela? Tudo tinha acontecido muito de repente e Renata não tivera tempo de processar. Até a madrugada de sábado, Bernardo era um garoto com quem ela até cogitava passar uma noite, nada mais do que isso. Na verdade, houvera aquele dia em que almoçaram e passaram a tarde juntos, mas Renata sempre desconfiava que, no fundo, o que ele queria mesmo era transar.
Durante esses dois dias, porém, Bernardo havia apenas se doado, sem esperar nada em troca. Estava sendo carinhoso, cuidadoso, preocupado. Responsável. Quantas vezes, na vida dela, precisara desse tipo de dedicação e não havia encontrado em quem se apoiar?
Pouco antes de dormir, foi até a cozinha. Pegou na geladeira um pote com um mix de frutas picadas que Bernardo havia deixado para ela. Acrescentou iogurte e comeu ali, na cadeira alta junto ao balcão. Depois foi se ajeitar para deitar. O celular vibrou e ela pegou o aparelho, achando que seria a resposta de Carla.
“Oi, Rê. Quando salvei meu número, já dei um olá para poder salvar o seu. Tá tudo bem? Se não estiver, a qualquer hora, me chama, tá? Mesmo que seja de madrugada. Boa noite, beijo” — era a mensagem de Bernardo.
Ela sorriu.
“Não vou chamar você de madrugada, Bê. Já abusei muito da sua boa vontade.” — ela respondeu.
“Não é abuso. Chame.” — teimou ele.
“Boa noite! Obrigada por tudo.” — despediu-se Renata.
A dor ainda incomodava um pouco. Ela deitou-se virada para o lado vazio da cama. Nunca tinha sentido falta de companhia: às vezes dormia só, outras, acompanhada. Sempre com um par casual, no entanto. Dormir com alguém com quem não havia transado? Estranho.
Mesmo assim, dormiu sentindo um vazio daquele lado da cama.