Selton ressonava, nu, espalhado na cama king size do motel. Renata, também sem roupa, sentou-se devagar para não acordá-lo, depois foi levantando-se e se pôs de pé. Sempre cuidadosamente, recolheu do chão, de cima de uma poltrona, do aparador do lado da porta, suas roupas espalhadas. Foi se vestindo. Catou os scarpins dourados e calçou. Pendurou a bolsinha no ombro e saiu do quarto tentando fazer o menor ruído possível ao abrir e fechar a porta.
Chegou em casa ao amanhecer. Descalçou os sapatos ao lado da porta e andou até o quarto, onde tirou a roupa e pendurou no cabideiro. Foi para o banho, prendendo o cabelo no caminho.
Tinha sido uma noite bem divertida. Selton era interessante, além de bonito. Gostou de conversar com ele e se entenderam muito bem entre os lençóis. Mas estava satisfeita de vê-lo apenas uma vez, não sentia vontade de repetir a dose. Não adianta, regras são regras. Embaixo do chuveiro, voltaram à sua memória as cenas do encontro com Bernardo.
“Diz que não quer”, “Você não consegue dizer isso, porque não é verdade”, soou a voz dele em sua cabeça. Pretensioso! Por que eu não disse que não quero? Tão rápido e simples: “não quero”. Será que ele tem razão?
Saindo do box, Renata sentiu uma dorzinha de cabeça. Levou uma mão à testa e apoiou-se com a outra na parede. Engraçado estar com dor de cabeça, não estou de ressaca nem nada. Nem bebi! Pode ser cansaço, trabalhei de dia, ficamos acordados até bem tarde, devo ter dormido umas duas horas. É isso, preciso dormir.
Ela se secou, soltou os cabelos, ajeitou-os com os dedos, jogando-os para trás, e foi para o quarto. Deitou-se nua e cobriu-se com um edredom. Fazia um tempo fresco agradável, não chegava a estar frio. Ela se encolheu e em pouco tempo estava dormindo.
Bernardo acordou no sábado de mau-humor. Levantou da cama esfregando um olho, passou pelo banheiro e foi para a cozinha. Pegou uma garrafa com iogurte de morango, encheu um copo e começou a beber de pé em frente ao balcão, tudo de uma só vez.
Fora difícil dormir na noite anterior. Tinha chegado em casa ainda com raiva, se perguntando se Renata estaria ali, no apartamento vizinho, com aquela imitação barata de ator de TV. Ou estaria na casa dele? Num motel? No carro? Aquela safada. Não estava habituado ao sentimento de ciúme. E estava especialmente contrariado por sentir isso em relação a Renata, tanto por causa da aposta quanto por causa do descaso com que ela o havia tratado. Achou que ela estava caidinha por ele naquele corredor… Ou seria o contrário? Cogitar isso já o enraivecia novamente.
Deixou o copo na pia e voltou para a sala. Deitou-se no sofá. Começou a arquitetar o que faria para virar o jogo outra vez. O que tinha funcionado melhor? A aproximação amigável. Embora ficasse excitado apenas de lembrar a expressão no rosto dela na noite anterior, o calor de seu sexo pulsando nos dedos dele, o quanto estava molhada… talvez aquilo tivesse mexido mais com ele do que com ela. Não, isso, não. Se negava a assumir que tivesse sido afetado…
Já sei. Vou lá. Ela falou em assistir a um filme de suspense, e ontem mesmo ficou dito que o acordo está valendo outra vez. Farei partir dela a iniciativa de ficar comigo de novo. De volta ao jogo.
Deve ser uma sinusite, pensou Renata ao acordar com dor atrás dos olhos. Também não descansei o suficiente, sinto o corpo dolorido. Já fui mais resistente, mal dancei para ficar assim tão cansada! Ou seria do sexo? Ah, não, cansar de transar? A boceta não está doendo. Consultou o relógio de parede. Ué, dez horas, devia já ter passado um pouco. Ela foi até a cozinha, onde colocou café na cafeteira e ligou-a. Sentou-se em uma cadeira alta da bancada, onde apoiou os cotovelos. Escondeu o rosto nas mãos, depois massageou as têmporas. A dor irradiava dos olhos para o resto da cabeça. Gostava de comer uma bisnaguinha com geleia para acompanhar o café, mas estava sem apetite. E assim que a bebida caiu em seu estômago, ficou um pouco nauseada.
Vou deitar e assistir a uma série, se der sono, durmo de novo. Ainda bem que é sábado, trabalhar desse jeito não dá. Voltou para o quarto, entrou debaixo do edredom e escolheu no streaming: “Supernatural”. Deu um sorrisinho sacana lembrando da noite com o sósia do astro. Em seguida, franziu o sobrolho. Doíam as articulações. Ficou o mais quietinha que conseguiu e acabou adormecendo outra vez.
Ela gostou da minha lasanha, da minha salada… Gosta de massas, de temperos agridoces. Posso fazer outro almoço para ela, convidar para ver um filme ou me convidar para assistir na casa dela… Quem sabe um macarrão à carbonara ou um fettuccine alfredo?, divagava Bernardo, levantando-se do sofá e indo para o banho. Perfumou-se, vestiu um abrigo de moletom e um par de tênis. Foi até o 701. Ensaiou por um tempo como falaria, depois bateu. Nada. Bateu com um pouco mais de força. Silêncio do outro lado. Será que ela não voltou para casa? Foi até a garagem para ver se o carro dela estava lá. Estava. Voltou.
— Renata! — chamou meio envergonhado. Ergueu o tom de voz. — Renata!
Bateu outra vez, sem resposta. Apoiou a mão na superfície de madeira, depois foi deslizando até o trinco, onde seus dedos esbarraram. A porta se abriu lentamente. Seria muito absurdo entrar sem autorização?
— Renata! — repetiu na direção do quarto.
Fechou a porta e andou devagar para lá. Ela vai ficar furiosa comigo por entrar assim. Conseguia ver que alguém estava na cama, coberto por um edredom. E se ela não estivesse sozinha? Pensasse nisso antes de entrar, seu intrometido.
Chegou à porta do dormitório. Na televisão, a imagem do ator que se parecia com Selton. Bernardo fez uma careta de impaciência. Renata dormia, sozinha, e sua testa estava úmida de suor. Sentou-se devagar na cama. Alguma coisa estava errada.
Deixou-se vencer pelo impulso e acariciou as ondas do cabelo dela bem de leve. Seu sono era inquieto e ela despertou com o toque, mesmo sutil.
— O que você está fazendo aqui? — Renata perguntou assim que viu Bernardo.
— Desculpa a invasão. Vim te convidar para almoçar e a porta estava aberta, então eu… Tá tudo bem com você? — ele ainda estranhava algo na situação.
Renata tremia um pouco.
— Devo ter esquecido a porta aberta quando atendi a tele-entrega da farmácia. Tá tudo bem, sim. Só tô cansada, deve ter sido da noitada. E com frio, mas aí é só ligar o ar condicionado.
Bernardo experimentou a espessura do edredom.
— Não está tão frio assim. E você chega a estar suando… Renata, você está com febre.
Ela fez que não, veemente.
— Eu nunca adoeço. Já me vacinei contra gripe, estou ótima. Só preciso descansar.
— São onze e meia. Você não me parece em condições de fazer seu próprio almoço.
— Lá vem você… — resmungou ela.
— Você tem um termômetro? — indagou Bernardo, preocupado.
— Devo ter um aí na gaveta da mesinha de cabeceira.
Ele remexeu a bagunça do móvel e encontrou um termômetro digital.
— Vem, deixa eu colocar o termômetro. — pediu, fazendo menção de erguer o edredom, que Renata prontamente segurou.
— Estou sem roupa. Me dá aqui.
A própria dona da casa posicionou o objeto.
— Você não acabou de atender a farmácia?
— Ai, Bernardo, sim. Eu só coloquei o roupão, atendi e voltei para a cama. Tá me fiscalizando?
O vizinho ergueu ambas as mãos.
— Não, não, ok. Acho que você não desceria à portaria nua, embora concorde que seria uma visão maravilhosa para todos que te vissem. E claro que, se descesse, eu não teria nenhum direito a dizer nada.
— Que bom que você sabe. — confirmou Renata, irritada.
Soou o bipe do pequeno aparato. Bernardo pegou o termômetro da mão de Renata, que pretendia protestar.
— Você está com 39ºC, Renata. Para um adulto, isso é uma febre altíssima. Que remédio você tomou?
Ela indicou uma caixa ao lado do abajur.
— Isto é antitérmico, devia ter baixado.
— Mas tomei para a dor de cabeça que não passava. — ela explicou, tentando disfarçar o sofrimento na expressão.
Bernardo a encarou, sério.
— Então você está com dor de cabeça também. Por que não disse? — ele questionou, preocupado.
Renata outra vez acenou negativamente e afundou mais embaixo do edredom.
— Por que você não vai cuidar da sua vida, Bernardo? Poxa, que merda, me deixa. Já tô com a cabeça estourando, tenho vontade de arrancar os olhos da cara. E nem consegui descansar. Tomei o remédio, assim que ele fizer efeito, a tal febre baixa e tá tudo ok. Você pode ir para a sua casa. Não precisa ficar aqui me azucrinando.
Ele sorriu.
— “Renata… ingrata..” — cantarolou.
— Sério, isso, garoto? — Renata reclamou, se virando para o outro lado. — Só me deixa quieta.
— Vamos fazer assim: eu vou. Volto daqui a uma hora, para ver se você está melhor, se levantou, se está almoçando. Se você não estiver, faço um almoço pra você e você vai ter que aceitar.
— Se eu concordar, você vai embora? — ela perguntou com a voz arrastada, sem se voltar.
— Ok, vou embora. — Bernardo fez um carinho no ombro dela, que se encolheu levemente. — Te cuida.
Foi uma hora longa. Ele, porém, ocupou parte dela fazendo um creme de ervilha. Serviu em uma cumbuca de vidro, com tampa, e voltou ao apartamento de Renata. Chegando lá, a porta seguia destrancada, e ela ainda estava deitada. Na cozinha, procurou uma bandeja e uma colher e se direcionou ao quarto.
— Parece que você está do jeito que estava. Ou melhorou? — disse ele ao entrar.
Renata não se mexeu. Bernardo colocou o abajur no chão e depositou a bandeja em seu lugar. Tocou o braço da vizinha com gentileza. Ela se virou de barriga para cima, com os olhos entreabertos e o rosto todo suado.
— Rê, como você está se sentindo? — perguntou baixinho.
— Com dor. Na cabeça, nas juntas, nos olhos. E com frio. — ela respondeu, tremendo.
— Te trouxe um creme para o almoço… — disse ele, passando a mão nos cabelos dela.
— Não tenho fome. Tô meio enjoada… Até ia achar que tô de ressaca, se tivesse bebido. Odeio admitir, mas você deve ter razão. Estou doente. É melhor você ir embora, pode acabar pegando o que eu tenho, sei lá, pode ser contagioso.
Bernardo franziu o cenho.
— Alguém precisa cuidar de você nesse estado. Eu só vou embora se souber que você não está sozinha. Cadê a sua amiga? Posso falar com ela e ela vem, se você não aceita que eu te ajude.
Renata fez que não.
— Carol foi viajar com o Marcelo. Eles estavam planejando essa fugida há meses, é uma espécie de lua de mel. Nem teria como ela voltar, a essa hora deve estar no calorzinho de uma praia do Nordeste. Partiram praticamente direto da festa.
Bernardo ficou pensativo.
— Outras amigas? Sua família? — sugeriu.
— Não tenho outra amiga tão íntima, só colegas, conhecidas. Meu pai já faleceu, minha mãe mora no interior. Não tenho irmãos.
— Algum namorado? — sondou ele.
Renata suspirou, impaciente.
— Namorar não é comigo, Bernardo, você sabe. Me deixa aqui que eu me viro. E se eu estiver com algo que é contagioso, não quero que você pegue.
— Primeiro: trouxe esse creme e acho que você devia fazer um esforço e comer. É importante se alimentar bem quando se está doente. Segundo: quem sabe eu te levo no médico e a gente fica logo sabendo o que é? Assim você para de me mandar embora. Acho que, se eu tivesse que pegar, já teria pegado, aqui com você.
Renata sentou-se, cobrindo-se com o edredom.
— Me alcança ali aquele roupão. — apontou para o cabideiro.
Ele fez o que ela pediu.
— Agora vira para eu me vestir.
— Renata, eu já vi tudo o que tinha para ver no seu corpo. — ele disse, entre brincalhão e malicioso.
Ela o encarou, séria e ele se virou.
— Isso não significa que você tem direito de me ver nua a hora que você quiser, sabia? Se você não sabia, aprenda comigo enquanto estou viva.
— Já entendi! Ok. Posso virar?
— Pode.
Já se acomodando embaixo da coberta novamente, Renata sentava-se na cama, recostada na cabeceira. Bernardo lhe entregou a bandeja. Ela abriu o recipiente e cheirou o creme.
— Isso parece muito bom. — disse, mexendo com a colher no alimento.
— Só temperei com sal, alho, cebola e meus condimentos. Queria colocar bacon, mas achei que não devia, que talvez você não devesse comer algo tão gorduroso.
Renata deu a primeira colherada.
— Continuo sem apetite e um pouco enjoada, mas acho que a ânsia pode piorar se só tiver remédio no estômago, então, vou tentar comer um pouco, tá? Não sei se consigo comer tudo. Mas está bom mesmo!
Aos poucos, ela conseguiu comer metade da cumbuca.
— Não force. Não quer mais? — perguntou Bernardo, solícito.
Ela negou. Ele tirou a bandeja e levou para a cozinha, onde lavou a colher. Guardou a cumbuca na geladeira.
— E o enjoo? — perguntou, parando na porta do quarto.
— Ainda sinto um pouquinho. — assumiu ela.
— Rê, é sério. Acho que eu podia te levar ao médico, um posto de saúde, hospital. Tínhamos que ver o que você tem, até para dar um tratamento adequado.
Renata baixou os olhos.
— Ok. Mas com uma condição: se eu estiver com algo contagioso, você não vai vir aqui enquanto eu não estiver curada. Pode ser?
— Tá, tá. — concordou Bernardo, a contragosto. — Veste uma roupa que vou te levar.