Capítulo 1
A Solidez do Exílio
O metal da placa, corroído pelo tempo e pela negligência, refletia uma luz pálida e distorcida, como se fosse incapaz de decidir entre servir ao seu propósito ou ceder à inutilidade. A letra E em vermelho, cortada na diagonal por um único traço. Seria um comando frio e sem alma ou sua interpretação era justamente o que demonstrava que a humanidade ainda tinha algum poder de escolha, mesmo que essa escolha normalmente significasse, justamente, o caos, a injustiça, num efeito em cadeia de eventos não previstos pela exceção que tendia a se tornar regra.
Era esse pequeno fragmento de um mundo quase perdido que Érico Santiago contemplava, sentado no mesmo banco de praça em que costumava dormir até antes de ganhar seu abrigo dobrável.
A cidade ao redor pulsava em um ritmo que ele não conseguia mais acompanhar. Carros autônomos deslizavam pelas ruas, suas superfícies reluzentes refletindo letreiros digitais que prometiam conveniência e eficiência. Pedestres moviam-se rapidamente, imersos em óculos-visores que projetavam mundos que ele não podia ver, carregando consigo uma aura de pressa indiferente. Entre esses elementos, Érico era um anacronismo, uma figura que parecia deslocada tanto no espaço quanto no tempo.
Ele puxou o tecido fino de sua jaqueta de marca, uma peça que, como quase tudo o que possuía, era fruto de um programa de "redistribuição consciente", um eufemismo elegante para os lotes de roupas descartadas que chegavam às comunidades sem-teto. Era no bolso interno que mantinha seu dispositivo HabTech, um pequeno cubo dobrável que se transformava em um abrigo que combinava o rudimentar e o moderno, quando necessário. A tecnologia, embora eficiente, parecia zombar dele: era uma solução provisória para um problema permanente.
Mas não era o abrigo que o inquietava. Eram as placas.
Nos últimos dias, ele notara algo estranho. Primeiro, fora uma sensação vaga, quase imperceptível, de que as palavras na placa digital, que realmente era a que valia para as leis de trânsito atuais, "Proibido Estacionar", carregavam um peso incomum, como se estivessem impregnadas de uma intenção velada, que ele não sabia interpretar. Ela costumava mudar seus dizeres, dependendo do horário, permitindo que pessoas parassem ali, mas naquele período ela se manteve a mesma. Um defeito, talvez.
Depois, vieram os detalhes: o brilho das letras parecia mudar dependendo do ângulo em que ele as olhava, e as bordas metálicas da placa pareciam se curvar ligeiramente, quase como se quisessem dizer a ele para mudar seu ponto de vista, curvar a cabeça.
Hoje, contudo, a mudança fora inegável. Era o texto que tinha mudado:
"Aqui não é o seu lugar!"
Era impossível. As placas eram projetadas para serem dinâmicas, sim, mas somente em contextos específicos: atualizações de horário, mudanças temporárias para carga e descarga, ajustes meteorológicos. Nunca mensagens personalizadas. Ele piscou, esfregou os olhos, olhou de novo. O texto estava de volta ao habitual: "Proibido Estacionar".
Por um momento, ele duvidou de sua sanidade. Tinha plena consciência de que sua mente, desgastada pelos anos de marginalização e pelo conflito interno com o mundo ao seu redor, não era mais tão confiável quanto gostaria. Mas a sensação persistia, martelava na periferia de sua consciência.
Levantou-se do banco, seus movimentos eram lentos e calculados. Aproximou-se da placa, como se esperasse encontrar alguma pista no painel digital, alguma explicação racional para o que vira. Não havia nada de extraordinário ali. Ainda assim, ele sentia que algo o observava, algo que escapava ao seu campo de visão mas que estava presente, constante.
Naquele local abandonado pela consciência social de existência, não haviam pigmentos de filmagem, as estruturas que transmitiam imagem em tempo real para a central do governo, espalhadas por todos os cantos da cidade.
"Talvez eu esteja enlouquecendo de vez." Era um pensamento que vinha com frequência, quase como um velho amigo que passava para uma visita indesejada.
Enquanto Érico afundava em sua introspecção, a cidade ao redor parecia se mover em uma coreografia cuidadosamente ensaiada. As fachadas dos prédios mudavam de cor para refletir o humor do dia, ou talvez do mercado financeiro, ele nunca tivera certeza. Placas holográficas flutuavam acima das ruas, exibindo mensagens tão genéricas quanto encorajadoras: "Confie no sistema", "O progresso é inevitável". Ele tinha aprendido a ignorá-las, mas agora, com a mensagem da placa ainda ecoando em sua mente, cada uma dessas frases parecia carregada de uma ironia cruel.
O meio-dia trazia consigo uma espécie de ritual na praça central. Não um ritual sagrado, mas um momento marcado pela resignação coletiva. Era a hora em que drones deslizavam silenciosamente pelo céu, deixando cair pequenos recipientes transparentes em áreas designadas. Cada recipiente continha dois comprimidos nutricionais, etiquetados como "Almoço Nutri-Balanceado®" e uma caixa com dois sucos com sabores artificiais de salgados e doces. Eles mudavam a cada gole, a sensação era de que a cada pequena introdução do líquido na boca, fosse uma “garfada”em algum alimento. O gosto chegava a ser bom.
Érico observava o movimento com um misto de repulsa e inevitabilidade. Por mais que detestasse a ideia de depender daquele espetáculo pseudoaltruísta, ele sabia que os comprimidos eram necessários para evitar o colapso físico. Afinal, o mundo moderno tinha otimizado até mesmo a caridade, reduzindo-a a um cálculo preciso de calorias e nutrientes.
Ele se levantou do banco e caminhou até o ponto de coleta. Lá, outros moradores de rua já se aglomeravam, movendo-se com a familiaridade de quem repetiu aquele gesto centenas de vezes. Os rostos carregavam histórias, alguma tragédia que o sistema preferia ignorar.
— Ei, filósofo! — A voz rouca de Antônio, um homem corpulento com a barba desgrenhada, cortou o ar. Ele era conhecido por sua língua afiada e por um senso de humor ácido que nem sempre encontrava a recepção desejada. — Veio pegar sua ração existencial hoje?
— Ração existencial, não. Só os comprimidos mesmo — respondeu Érico, com um sorriso cansado.
— Ah, mas não é você que diz que o corpo é apenas um veículo? Então o que importa o combustível? Mastiga aí sua sabedoria, deve ser mais nutritiva que esses comprimidos. — Antônio riu, e alguns outros se juntaram à risada. Ele se referia a uma espécie de farelos de biscoito que ficavam na Praça, em uns totens, abastecidos pelo subsolo, que diziam ser suplementos que evitavam todo tipo de doença, mas que Érico acreditava ser algum tipo de medicação, com intenções subjetivas, desconhecidas.
Eles se sentaram juntos em um dos poucos bancos ainda inteiros da praça. O barulho de pacotes sendo abertos e comprimidos sendo mastigados misturava-se ao som distante do trânsito. Maria, uma mulher de rosto marcado por anos de sofrimento, jogou um dos comprimidos para o alto antes de pegá-lo com a boca, como se fosse um jogo.
— Você ouviu a última dele? — perguntou ela, apontando para Érico com um movimento de cabeça. — Agora ele tá dizendo que as placas de trânsito estão falando com ele.
— Ah, é mesmo? — Antônio inclinou-se para frente, fingindo interesse. — O que elas disseram? Que você é o novo Sócrates do século vinte e dois?
— Não — respondeu Érico, mantendo a calma. — Disseram que aqui não é o meu lugar.
O silêncio que se seguiu durou apenas alguns segundos, mas foi suficiente para que ele sentisse o peso do julgamento em cada olhar. Então, Antônio soltou uma gargalhada.
— Bom, pelo menos alguma coisa nessa cidade está funcionando como deveria. Porque, sinceramente, você não pertence a lugar nenhum mesmo.
As risadas voltaram, mas havia algo mais nelas dessa vez. Não era apenas zombaria, era um misto de frustração, de uma verdade que nenhum deles queria admitir.
— Você acha que é especial, é isso? — perguntou Maria, cruzando os braços. — Só porque leu meia dúzia de livros velhos que ninguém mais liga?
— Não é sobre ser especial — disse Érico, sua voz carregando uma nota de cansaço que ele não conseguia esconder. — É sobre tentar entender. Há algo errado com essas placas, e não estou falando apenas do que vi. Estou falando do que representam.
— O que representam? — Antônio arqueou uma sobrancelha. — Progresso? Controle? Ou só o fato de que ninguém se importa com gente como a gente?
— Controle — respondeu Érico, mais para si mesmo do que para os outros. — Mas não o tipo que você está pensando. Não é o controle direto, o que diz o que você pode ou não pode fazer. É o controle que planta dúvidas. Que te faz questionar se o problema é você.
Maria balançou a cabeça, enfiando o segundo comprimido na boca. — Érico, você precisa de duas coisas: uma noite de sono decente e um psiquiatra. E, infelizmente, nenhum dos dois está no menu.
Apesar das provocações, ele sabia que havia um certo respeito não declarado entre eles. Todos ali sabiam que a vida na rua era um campo de batalha onde a dignidade era a primeira a cair. E, embora zombassem dele, também reconheciam que havia algo em sua insistência que os incomodava — talvez porque lembrasse a todos que, em algum momento, eles também já haviam tentado entender o mundo antes de desistir.
Quando o grupo começou a se dispersar, Érico permaneceu sentado, olhando para a caixa de suco em sua mão. "Último sabor: Uva," dizia a embalagem, mas o gosto parecia sempre melhor quando não sabia qual era a tentativa de imitar. Ele fechou os olhos por um momento, tentando acalmar a tempestade em sua mente e bebeu o último gole do que ele achou que se lembrava ser sabor de amora.
O sol começava a descer no horizonte, e a praça mergulhava em uma penumbra que parecia engolir todos os detalhes. Ele se levantou novamente e caminhou até a placa. Não sabia o porquê; talvez fosse apenas uma tentativa inútil de buscar mudanças que ele já sabia que não encontraria.
Mas, desta vez, não havia mensagem. Apenas o "Proibido Estacionar" habitual, tão vazio de significado quanto qualquer outra coisa ao seu redor.
E, ainda assim, ele não conseguia afastar a sensação de que algo estava esperando. Algo que ele ainda não conseguia compreender.
Capítulo 1: A Solidez do Exílio (Conclusão)
A noite chegou sem cerimônia, envolvendo a praça em um véu de penumbra e resignação. O vento úmido começou a sussurrar entre as árvores e as estruturas corroídas, anunciando a chuva que não tardaria a cair. Érico, acostumado aos caprichos do clima urbano, puxou de sua jaqueta o pequeno cubo metálico que carregava no bolso interno — seu HabTech.
Com movimentos lentos, quase cerimoniosos, ele ativou o dispositivo. A tecnologia, um presente dos filantropos que tanto gostavam de exibir suas boas ações, era ao mesmo tempo um alívio e uma humilhação. O cubo brilhou em tons azulados por um instante antes de começar a se desdobrar, formando uma estrutura simples, mas funcional. Era um abrigo modular, com paredes translúcidas que repeliam o vento e a chuva, e uma superfície interna que regulava a temperatura.
Apesar da eficiência, Érico não podia evitar a sensação de que estava se envolvendo em uma espécie de cativeiro portátil. Ele ajustou o teto retrátil, esticando-o ao máximo, enquanto gotas esparsas começavam a cair. O som da chuva no material sintético era abafado, quase reconfortante, mas carregava uma melodia que ele preferia não ouvir.
Do lado de fora, a chuva transformava a praça em uma cena quase surreal. As poças refletiam os letreiros holográficos que ainda piscavam mensagens de otimismo irônico. Dentro do abrigo, Érico sentou-se sobre o fino colchão térmico, encostando-se na parede que emitia um leve brilho, como se tentasse simular a segurança de um lar que ele não tinha.
Ele fechou os olhos, mas o som da tempestade parecia intensificar-se em sua mente. Cada gota que batia contra o teto da HabTech trazia de volta fragmentos de memórias que ele preferia manter enterrados. Um clarão atravessou o céu, seguido por um trovão distante, e sua respiração tornou-se irregular.
Não era apenas a chuva. Era a tempestade. Sempre a tempestade.
Ele tentou se concentrar em sua respiração, mas os flashes em sua mente eram implacáveis: uma estrada escorregadia, o som de pneus deslizando no asfalto molhado, o impacto surdo que parecia ecoar infinitamente. O pânico voltou a apertar seu peito, e ele cerrou os punhos contra o colchão. A imagem permanecia, incompleta, como um quebra-cabeça que ele sabia que não queria resolver.
Tentando escapar da espiral de lembranças, Érico abriu os olhos e puxou a aba lateral do abrigo. A chuva continuava, mas a praça parecia estranhamente silenciosa, quase deserta, somente os abrigos montados. Ele olhou para a placa novamente, o "Proibido Estacionar" brilhando de forma irregular através das gotas que escorriam pelo painel digital. Enquanto fechava, acreditou ter visto um rápido piscar: “Proibido?” e a mensagem original de volta.
Ele fechou a aba, o tecido sintético isolando-o novamente do mundo exterior. Era como um casulo, mas não de proteção; era um confinamento, uma lembrança cruel de que ele estava sozinho, mesmo em meio à multidão. Sentiu um tremor percorrer seu corpo, mas não de frio. Era a sensação insuportável de carregar algo que ninguém mais podia ver ou entender.
O tempo parecia dilatar-se enquanto a tempestade rugia lá fora. Ele não sabia dizer quanto tempo passou ali, apenas que, em algum momento, conseguiu adormecer. Mas o sono não trouxe paz. Seus sonhos eram tão inquietos quanto suas memórias, preenchidos por vultos e sons indistintos. Vozes que gritavam, mas cujas palavras eram devoradas pelo barulho da chuva.
Quando despertou, a tempestade havia cessado. O ar estava pesado, carregado com o cheiro da terra molhada e do asfalto que havia sido lavado pela chuva. Ele abriu a aba do abrigo novamente, permitindo que a luz cinzenta do amanhecer invadisse o espaço. A praça parecia ter mudado durante a noite, como se tivesse sido transformada em algo novo, mas igualmente desolado.
Lá estava a placa. Intacta, imóvel. E, ainda assim, ele não conseguia afastar a sensação de que ela estava esperando por ele, como se o destino tivesse mais uma mensagem guardada para o momento certo.