Capítulo 2
A Observadora de Espelhos Quebrados
A aurora era fria e pálida, trazendo consigo um silêncio inquietante. A praça, ainda marcada pelos resquícios da tempestade, parecia suspensa entre o desalento e uma promessa vaga de renovação. As poças d'água refletiam o céu cinzento, enquanto Érico emergia lentamente de seu abrigo HabTech. Seus movimentos quase calculados, como que se um pequeno movimento já o fizesse sentir todo o peso de um dia que estava prestes a começar sem propósito definido.
Ele não sabia ao certo o que o atraía de volta à placa, mas lá estava ele, parado diante do letreiro. As letras digitais brilhavam com uma intensidade que parecia desproporcional ao seu objetivo mundano: "Proibido Estacionar". Não havia mais mensagens ocultas, nenhum lampejo de subversão. Apenas a frieza funcional de um comando que, como ele, parecia não pertencer a lugar algum.
Mas então, enquanto fixava os olhos na placa, uma sombra atravessou sua visão periférica. Ele virou-se lentamente, encontrando a figura de uma mulher. Ela não pertencia àquele cenário, isso era óbvio. Suas roupas estavam impecáveis, contrastando com o desleixo e a degradação que definiram aquele espaço por tanto tempo. Havia algo em sua postura, uma mistura de determinação e inquietação, que a tornava quase tão deslocada quanto ele.
— Essa placa tem algo de especial? — perguntou ela, com um tom que oscilava entre curiosidade genuína e ironia controlada.
— Essa placa… tem algo de especial? — perguntou a mulher novamente, agora com o olhar fixo em Érico, como quem analisa uma peça de museu para descobrir algo perdido no tempo.
Érico hesitou. Havia algo naquela pergunta que parecia simultaneamente simples e profundamente desconcertante. Ele a encarou, tentando decifrar se estava sendo zombado ou se, de fato, havia curiosidade sincera em suas palavras.
— Depende do que você considera especial — respondeu, finalmente. Sua voz carregava o cansaço de uma noite inquieta e a cautela de quem está acostumado a ser desacreditado. — Talvez o especial seja ela continuar em pé, enquanto o resto de nós está desmoronando.
A mulher sorriu, um sorriso que não era de deboche, mas de quem estava intrigada. Ela se aproximou, pisando com cuidado para não molhar os sapatos em uma poça próxima. O silêncio entre eles era preenchido pelo som de água escorrendo nos bueiros e pelo murmúrio distante da cidade que despertava.
— Então, o que você viu? — insistiu ela, agora em um tom mais sério. — Porque, pelo que sei, placas não costumam ser tão filosóficas assim.
— Eu vi algo que não deveria estar lá — respondeu Érico, cruzando os braços. Ele não sabia por que estava disposto a responder, mas havia algo na presença dela que o fazia continuar. — Algo que dizia mais sobre mim do que sobre o trânsito.
Ela inclinou a cabeça, como se estivesse tentando compreender um quebra-cabeça cuja lógica de encaixe lhe escapava.
— Deixe-me adivinhar — disse ela, com um toque de provocação na voz. — Algo como "Por que você ainda está aqui"?
O choque de Érico foi visível, ainda que ele tentasse disfarçar. Ele franziu a testa, dando um passo atrás involuntariamente.
— Como você pensou isso? — perguntou, a desconfiança em sua voz agora clara.
— Não sei — respondeu ela, encolhendo os ombros. — Foi só um palpite. Talvez você tenha um rosto que grite deslocamento.
Érico não sabia se sentia raiva ou alívio. Ele passou uma mão pelo rosto, respirando fundo, tentando recuperar algum controle sobre a situação. Afinal, o que importava era que ela não parecia surpresa ou cética, mas sim interessada, algo que ele não via há muito tempo.
— O que importa, então? — perguntou ele, voltando a encará-la. — Porque, para mim, parece que nem mesmo essa placa sabe o que está tentando dizer.
— Talvez — respondeu ela, erguendo uma sobrancelha. — Mas e se a mensagem for apenas para você? E se ela não está tentando dizer algo, mas sim fazer você perceber algo que já sabe? Pode ser importante…
Os dois ficaram em silêncio por alguns segundos, um silêncio denso, carregado de possibilidades não ditas, só imaginadas. Érico olhou para a placa novamente, como se esperasse que ela se manifestasse outra vez, mas o letreiro continuava inerte, quase zombando de sua impotência.
— Meu nome é Lívia — disse ela, estendendo a mão. — E você?
— Érico — respondeu, apertando sua mão com hesitação. — Não uso ele, já tem um tempo.
— Talvez devesse voltar a usar. — disse ela, com um sorriso enigmático. — Talvez a placa esteja certa, e você realmente não pertença a esse lugar. Mas isso não significa que você não pertença a algum lugar.
Ele abriu a boca para responder, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, um zumbido familiar ecoou pela praça. Ambos olharam para a placa ao mesmo tempo, e ali, em letras que pareciam mais vivas do que antes, estava uma nova mensagem:
"Cuidado com os espelhos."
Lívia deu um passo à frente, estreitando os olhos como se quisesse desafiar a própria lógica.
— Bem... — disse ela, virando-se para Érico com um sorriso incerto. — Acho que agora isso ficou oficialmente interessante.
A nova mensagem os deixou paralisados. O letreiro piscava suavemente de forma quase imperceptível, como se hesitasse no pulsar: "Cuidado com os espelhos". Palavras simples, mas carregadas de uma estranheza desconcertante.
Lívia quebrou o silêncio primeiro. Seu olhar oscilava entre a placa e Érico, como se tentasse decidir qual deles era o mais enigmático.
— Espelhos… — murmurou ela, pensativa. — Você faz ideia do que isso pode significar?
Érico permaneceu imóvel por um instante. A palavra latejava em sua mente, como se fosse uma dor. Mas vasculhava seu cérebro em busca de relações que pudessem trazer respostas. Tudo o que encontrou foram fragmentos desconexos de memória. Algo que se dissipava antes que pudesse agarrar.
— Não faço ideia — mentiu, desviando o olhar da placa. — Mas estou começando a achar que essa cidade finalmente enlouqueceu de vez.
Lívia riu suavemente, cruzando os braços. Seu sorriso tinha algo de curioso, quase estudioso.
— E você está preocupado com a sanidade da cidade? — provocou. — Porque, pelo que vejo, parece que você já desistiu da sua há tempos.
Érico suspirou, sem disposição para discutir. O que poderia dizer? Que os últimos anos haviam sido um lento processo de lutas e desistências? Que cada dia o afastava mais de qualquer coisa que em algum momento tivesse considerado normal? Que agora até mesmo as placas pareciam ter mais certeza louca sobre seu destino do que ele próprio?
— Não me leve a mal — continuou ela, agora com um tom mais brando. — Só estou tentando entender o que está acontecendo aqui. A última coisa que esperava hoje era me deparar com um homem discutindo filosofia com um pedaço de metal.
— E, no entanto, aqui estamos — respondeu ele, secamente.
Lívia inclinou a cabeça, como se ponderasse sobre algo. Depois, olhou ao redor, avaliando a praça com um olhar atento. A chuva havia lavado os resíduos da noite, e os primeiros trabalhadores começavam a aparecer, rostos exaustos, passos mecânicos. A cidade não parava, não importava quantas mensagens enigmáticas surgissem em seus letreiros.
— Você já se perguntou se essas mensagens são para mais alguém? — perguntou ela, voltando a encará-lo.
— O que quer dizer? — Érico franziu o rosto.
— E se houver outras placas, em outros lugares, dizendo coisas para outras pessoas? — Ela fez uma pausa. — Ou, se quiser algo ainda mais interessante… e se houver apenas esta, e ela só falar com você?
A hipótese a fez sorrir, como se estivesse se divertindo com a própria imaginação. Mas Érico não achou graça. Havia uma possibilidade incômoda naquilo. Uma que ele não queria explorar.
— Não estou interessado em teorias conspiratórias — disse, tentando afastar o assunto. — Tenho problemas mais urgentes. Como conseguir sobreviver ao dia sem me preocupar com mensagens subliminares de sinais de trânsito.
— Ah, claro. — Lívia deu um meio sorriso. — Porque sua vida precisa ser tão previsível e ordinária, não é?
O sarcasmo a fez ganhar um olhar irado de Érico. Ela percebeu que talvez não tivesse escolhido o jeito certo de provocá-lo.
— Você tem um jeito peculiar de se meter na vida dos outros — resmungou ele.
— E você tem um jeito peculiar de ser estranhamente fascinante. — retrucou ela.
Por um momento, ficaram apenas se olhando. Era como se estivessem mapeando um ao outro, buscando compreender as sombras por trás das palavras. Então, sem aviso, a placa piscou.
A mensagem desapareceu.
Apenas o letreiro padrão retornou: Proibido Estacionar.
O súbito apagamento da frase "Cuidado com os espelhos" foi tão abrupto que parecia que queria ser notado. Como se algo tivesse recuado para as sombras, aguardando o momento certo para se manifestar novamente.
Lívia arqueou as sobrancelhas, voltando-se para Érico.
— Então… — disse ela, cruzando os braços. — O que faremos agora?
Érico não respondeu imediatamente. Porque, pela primeira vez em muito tempo, ele ouviu uma pergunta que o incluia. Ninguém perguntava para ele o que fazer em conjunto.
O silêncio entre eles se estendeu por alguns instantes. O letreiro digital da placa permanecia em sua programação padrão, inerte, sem qualquer vestígio da mensagem anterior. Se não fosse pela presença de Lívia, Érico talvez começasse a duvidar do que acabara de ver.
Será que ela também não era uma alucinação?
Ele olhou para a mulher à sua frente, e havia algo nos olhos dela, um brilho de fascínio misturado com inquietação. Talvez o mesmo que ele sentia.
— Agora eu te pergunto, — disse ela, quebrando o silêncio, pensando mais profundamente — se essa placa está falando com você, então o que exatamente ela quer dizer com "Cuidado com os espelhos"?
Érico soltou um suspiro. A pergunta martelava dentro dele desde que as palavras haviam surgido no letreiro. Espelhos. Reflexos. Ilusão.
Ele conhecia bem demais a força da metáfora.
— Espelhos mostram o que já está lá — murmurou, sem perceber que falava em voz alta.
Lívia ergueu uma sobrancelha.
— Sim… — incentivou ela. — Mas o que acontece quando eles mostram algo que não deveria estar?
Érico desviou o olhar. Não queria seguir essa linha de pensamento. Algo dentro dele se revirava, como um animal enjaulado sentindo a aproximação de uma ameaça invisível.
Lívia percebeu sua hesitação e sua expressão suavizou-se.
— Ei — disse ela, num tom que não trazia mais ironia ou provocação. — Se quiser esquecer isso, eu entendo. Mas se quiser descobrir… posso tentar ajudar.
Ele a encarou por um momento. O impulso inicial foi afastá-la. O que quer que estivesse acontecendo, era seu fardo. Ninguém mais deveria carregar isso.
Mas então a realidade o atingiu: ele já não sabia distinguir o que era real do que era apenas um tormento de sua mente cansada. Se ele estivesse louco, ao menos teria uma testemunha para verificar sua insanidade.
— Está bem — disse ele, enfim. — Mas se vamos investigar isso, acho que precisamos sair daqui.
Lívia sorriu, satisfeita com a resposta.
— Para onde, então?
Ele hesitou. Não tinha certeza. O que se faz quando um letreiro digital começa a enviar mensagens subliminares?
Foi então que algo o atingiu.
— Os espelhos — murmurou. — Se essa placa está tentando me dizer algo… então talvez haja algum local com espelhos envolvendo isso. Acho que é o mais óbvio.
Lívia piscou longamente, como que achasse a lógica um pouco estranha.
— Na verdade, o aviso pede cuidado, teoricamente, deveríamos nos afastar, não disso, não é? Além do mais, você conhece algum lugar com espelhos, que valha a pena investigar?
E então, como um estalo que já estava lá e ele não sabia, veio a resposta.
Ele conhecia.
— Sim — disse, lentamente. — E acho que não vou gostar do que vamos encontrar lá.
Lívia arqueou uma sobrancelha, agora ainda mais intrigada.
— Você é realmente cheio de surpresas.
Ela deu um passo atrás, esperando por sua decisão.
E Érico, pela primeira vez em anos, se viu prestes a ir para algum lugar diferente por vontade própria.
Ele não sabia se isso era bom ou ruim.
Só sabia que parecia não ter mais escolha.