Conto do Beijo

Em uma noite escura e tempestuosa, numa pacata cidade do interior, uma lenda antiga ganha vida nas ruas vazias. Dizia-se que a cada cem anos, numa noite amaldiçoada, uma figura sombria vagava em busca de um beijo maldito. A grande expectativa era porque se completava naquela exata data, no dia do beijo, o centenário. 

A figura era conhecida como a Princesa Secular, uma mulher de beleza estonteante, mas com olhos tão profundos e escuros quanto o além do Universo. Seu beijo, embora irresistível, carregava uma praga eterna. Aqueles que sucumbiam aos seus lábios eram condenados a vagar entre os vivos e os mortos, nunca encontrando descanso e jamais sendo vistos novamente, apenas sentidos. 

A noite caía como um manto sobre a cidade, e com ela, uma sensação de inquietação se espalhava pelas ruas desoladas. A tempestade que se formava era apenas um prelúdio do terror que estava por vir. A lenda  não era apenas uma história para assustar crianças; era como um aviso para todos os moradores.

Gabriel, um jovem cético, sempre zombou das superstições locais. Mas naquela noite, enquanto o vento uivava e as árvores se contorciam como criaturas agonizantes, ele sentiu um arrepio percorrer sua espinha. O único a se aventurar sozinho, naquele horário, pela praça central, como se buscasse desafiar a sorte, cruzou com uma figura que surgiu das sombras, movendo-se com uma graça que subjugava a fúria do vento. Era ela, a Princesa Secular, tão bela quanto as estrelas ocultas pelas nuvens tempestuosas.

Seus olhos eram poços de escuridão, prometendo segredos e perigos inomináveis. Seu vestido preto esvoaçava ao redor de seu corpo como as asas de um corvo, e seu cabelo escuro se misturava com a noite, mas sua coroa brilhava reluzente, com a luz do luar. Quando ela se aproximou de Gabriel, o mundo ao redor pareceu desaparecer, deixando apenas o som de seus corações batendo em uníssono.

Ela sussurrou seu desejo por um beijo, sua voz doce como o mel e mortal como o veneno. Gabriel, hipnotizado, nem se lembrou mais de alguma lenda. Sedento pelos seus lábios vermelhos como sangue, sucumbiu ao encanto. Ele se inclinou para ela, sua boca a centímetros da dela, e o tempo parou.

O beijo foi um choque elétrico, uma explosão de sensações que o consumiu. Era como se estivesse beijando a própria morte, doce e terrível e ao mesmo tempo prazerosa e contínua, como se o êxtase pudesse durar a eternidade. Porém, ao fim, uma frieza sepulcral se espalhou por seu corpo, e ele soube que havia selado seu destino.

A Princesa se afastou, deixando Gabriel com o sabor amargo da solidão em seus lábios. Ela desvaneceu na escuridão, e o jovem caiu de joelhos, condenado a vagar na penumbra entre dois mundos, nunca mais capaz de sentir o calor do sol ou o conforto do amor humano.

Agora, ele era capaz de perceber espíritos aprisionados, apesar de não poder se comunicar com eles e também conseguia seguir os passos de quem amava, mas apenas para presenciar as tristezas do tempo. 

Sua única esperança? Esperar outros 100 anos para reencontrar a Princesa Secular e confrontá-la antes que fizesse uma nova vítima.

Seria capaz? Ou estaria ele apenas fantasiando a chance de tomar de outro novamente aquele beijo?


Eder B. Jr.