Valentim nas cinzas

Numa noite de quarta-feira de cinzas, quando as ruas silenciosas da pequena cidade pareciam ecoar o sussurro dos fantasmas do passado, dois corações batiam em compasso, ansiosos por se encontrarem sob o véu do misterioso carnaval que ainda deixava sua marca nas sombras das vielas.

Era Valentine's Day, uma data onde o amor florescia em meio à melancolia das cinzas queimadas. Não conseguiam imaginar sequer uma outra ocasião onde aquelas duas datas coincidiram anteriormente. Pensaram juntos sobre isso e riram por não terem paciência de tentar fazer as contas. Queriam aproveitar todo tempo que tinham juntos, afinal, eram amantes secretos. Sem contar que também era um dia de perigo, pois suas famílias carregavam consigo uma antiga rixa, digna das tragédias de Shakespeare e de ambos os lados, as casas estavam cheias, ainda com a ressaca acumulada por aqueles dias de festa. Eram reféns de um destino de amor proibido e condenado pela sociedade que faziam parte. 

Apesar das pequenas advertências que o destino lhes dava, fosse por um conhecido passando, ou pela garoa que começava a molhar suas faces, eles haviam traçado um plano audacioso para se encontrarem. No ponto de encontro combinado, uma mansão abandonada há décadas, eles se encontraram, envoltos por uma certa sensação enigmática que pairava sobre o local. As sombras dançavam ao redor deles, como se os espíritos do passado estivessem testemunhando seu amor clandestino, mas o jogo de luz e escuridão eram apenas resultado da iluminação defeituosa dos arredores, acompanhados da luz trêmula de uma vela, que trouxeram. Diante daquele cenário que parecia romântico, eles trocaram juras de amor eterno. O ar estava carregado de eletricidade, como se os anjos ou o próprio Deus estivessem interessados em acompanhar o que poderia resultar daquele amor tão puro e proibido. Cada olhar, cada toque, cada suspiro era um risco que estavam dispostos a correr.

Mas o suspense logo tomou conta do ambiente quando um ruído estranho rompeu o silêncio da noite. Um calafrio percorreu suas espinhas, mas eles sabiam que não podiam recuar. Juntos, decidiram investigar o que quer que fosse que os espreitava na escuridão da mansão. O destino estava apenas começando a tecer sua teia, envolvendo-os em mistérios ainda mais profundos do que imaginavam. 

Adentraram os corredores sombrios, guiados apenas pela luz incerta que se filtrava pelas janelas empoeiradas. Cada passo era um mergulho mais profundo no desconhecido, e seus corações batiam em uníssono, como se fossem um só. Fragmentos de lembranças e histórias da mansão ecoavam em suas mentes, alimentando o suspense que os envolvia.

À medida que avançavam pelos corredores labirínticos, os murmúrios do passado pareciam ganhar vida ao seu redor. Sombras dançantes, sussurros distantes, cada canto da mansão parecia guardar um segredo há muito esquecido. Mas eles não recuaram. Unidos pelo amor e pela determinação, enfrentaram a passagem pelos cômodos como se fosse um desafio de obstáculos, que surgiam pelo caminho. A imaginação e o medo se apoderando do casal, que permaneciam muito próximos e mesclavam a tensão e o desejo, como se estivessem passando do quente para o frio e vice e versa, momento após momento. 

Finalmente, chegaram a uma sala oculta, escondida no coração da mansão. No centro, uma velha caixa de madeira repousava sobre um pedestal de pedra. Era como se estivesse esperando por eles, como se soubesse que seu destino estava entrelaçado com o deles desde o início.

Com mãos trêmulas, eles abriram a caixa, revelando seu conteúdo há muito guardado. Dentro, encontraram uma coleção de artefatos antigos: fotografias desbotadas, cartas amareladas pelo tempo, objetos misteriosos que pareciam pertencer a uma época esquecida.

Mas o mais intrigante de tudo era uma carta, escrita à mão em papel envelhecido. Suas palavras eram um eco de devaneios antigos, uma história de amor tão intensa e proibida quanto a deles próprios. Era como se estivessem lendo sua própria história, escrita há séculos por mãos desconhecidas. O destino havia traçado seus caminhos muito antes de seus corações se encontrarem.

Com os olhos brilhando de emoção, eles se entreolharam. Aquela mansão, aqueles artefatos, aquela carta... tudo fazia parte de um enigma que eles estavam determinados a decifrar.

Numa das fotos, um casal de antepassados juntos. Era como se os dois se olhassem naquela fotografia e se reconhecessem, mas com roupas mais antigas, clássicas, de um baile.

Com lágrimas nos olhos e corações transbordando de emoção, eles se abraçaram e se beijaram intensamente.

Era uma vontade, um sabor dos gostos das bocas, dos cheiros, da pele arrepiada causando mais arrepios ao outro, numa entrega onde eles já quase não podiam entender onde acabava o corpo de um e começava o do outro, quase já completamente imersos e inseridos nas graças e prazeres que ansiavam, até que tiveram um vislumbre, ao mesmo tempo:

Poderiam ser eles parentes? O estalo do pensamento bateu sobre ambos como se além de pensarem juntos, também tivessem lido um a mente do outro. Nem trocaram palavras para saberem que dividiram a dúvida. 

Talvez por isso as famílias tivessem tantos desentendimentos, quisessem tanto o afastamento? Já tinham sido uma só? E se sim, qual poderia ser o nível de proximidade sanguínea. 

Botaram a mão novamente na caixa, para buscar mais evidências e se tocaram, dedos nos dedos que pareciam ter soltado faíscas no encontro. 

Agarraram-se, derrubando não só a caixa, como tudo que estava próximo, debruçando-se no tapete que estava no chão abaixo se seus pés, a se importarem com nada mais, apenas com a magia que se saltava, junto com as roupas que abandonavam seus corpos. Nunca tinham feito isso, mas parecia que as bocas e as mãos sabiam exatamente onde ir e o que fazer. Os suspiros e gemidos se tornavam músicas e parecia que o calor os rodeava cada vez mais, até o momento em que finalmente se conectaram, se preencheram um do outro. Os corpos suados, as sensações que nunca tinham experimentado, como se cada movimento fosse multiplicando o prazer. Não estavam mais ali, estavam num outro plano, num paraíso só deles.

Tão entregues, tão extasiados, não perceberam que a vela que trouxeram também havia caído e que o fogo se alastrava por toda velha casa, seus móveis rústicos de madeira e os tecidos antigos de lã e algodão que cobriam tudo, rapidamente se tornaram chamas e enormes labaredas. 

O casal continuava e quanto mais o calor aumentava, mais intensamente se amavam, mais forte, mais rápido, mais profundo… 

Não houve tempo sequer de perceberem quando literalmente se desfizeram em chamas.


Eder B. Jr.